30 de maio de 2007

Pra fora


– Olha, préstenção: eu vejo umas coisas.

Eu era bem garoto quando tomei meu primeiro porre. Foi sim. Era tão moleque que meu pai tinha uísque mais velho que eu. Foi por isso que resolvi ir para uma festa acompanhado por uma de suas garrafas de 18 anos. Ele não sabe disso até hoje e, depois do tanto que bebi nas horas seguintes, eu também não deveria lembrar.

Todo buxixo comemorativo sempre fica mais animado quando tem o dobro de gente e deve ser por isso que o pessoal enche a cara. Mas todos aqueles gêmeos torna dificílima a passagem sem encostar em ninguém. Passei pelo sofá, mesinha de centro, abajur, aparador – opa, prazer: bola de pimbal – mesa de jantar, cristaleira (bônus 500 pontos) e pela porta do banheiro.

– Privada, eu te considero pra cacete.

Abracei o vaso sanitário e fui com tudo. Posso continuar nos detalhes? Eu acho que pode ser importante para o entendimento. Posso? Ok. Havia cadáveres do bufê com umas coisas verdes em decomposição pelo suco gástrico, uns submarinos de salame e um cruzador de canapé completamente destroçado pelas enzimas digestivas. No meio daquela confusão, consegui reconhecer plenamente apenas uma bolinha de queijo. Ela estava intacta e aquilo simbolizava a minha maior vitória infanto-juvenil: engolir 32 daquelas no menor tempo possível. Até hoje penso que eu também deveria ser reconhecido por colocar tudo pra fora no menor tempo, mas ninguém presenciou nem cronometrou aquele feito.

Sim. Eu tava sozinho com a privada quando aconteceu o inesperado. Todas aquelas partículas gosmentas começaram a rodar em sentido de rotação e translação, uma via láctea que ia girando no ar, com a bolinha de queijo ocupando sua posição solar de destaque. Uma profusão de luzes, explosões de estrelas e um buraco negro se abriu entre o resto de risole e batata palha processada. Dali surgiu a imagem da Antônia com aquela saia torta que rodou a cintura e o fecho foi parar na lateral. Feia. Se juntasse todo pêlo que tinha espalhado pelo meu corpo, não dava o buço dela.

Eu tinha certeza que era a Antônia. Tava mais velha, mais feia e tinha acabado de ser mãe. Segurava um bebê e andava de um lado pro outro, cantarolando. Imagina o Renato Aragão, cantando, vestido de Maria Bethânia. Assustou? A mim sim.

Descolei da privada me atirando contra a parede de ladrilho e o universo foi descarga abaixo. Ainda fiquei ali durante alguns minutos quando alguém entrou com a idéia de me curar com café forte e banho. É incrível como depois de ter bebido um monte sempre vem um sujeito querendo colocar você em contato com mais dois líquidos.

O dia seguinte foi uma dor-de-cabeça infernal e meu pai perguntando pela sua garrafa de estimação. Nem adiantava colocar a foto do uísque em caixa de leite que jamais iria encontrar seu infeliz paradeiro. No entanto, eu achei as minhas respostas nas festas seguintes.

Bebi, bebi, bebi - mais uma dose – bebi e bebi muita cerveja por me considerar grande o suficiente para ir nas festas sem a companhia de outra garrafa do meu pai. Conversa vai, manguaça vem, não demorou muito para o encontro com o meu par. É bom achar alguém que você pode colocar tudo pra fora.

Lá veio o universo rodopiando novamente. A cor mudou um pouco, entraram mais alguns astros aqui, saíram outros cometas ali, mas abriu-se mais uma vez o mesmo terrível buraco negro. Tive medo e senti um líquido quente esvaindo por entre as minhas pernas. Quer saber? Que se dane queu já tô no lugar certo pra isso. Fiquei sem piscar, repetindo mantramente “Antônia-não-Antônia-não-Antônia-não…”

Era o Abel. Ele estava na casa dele, andando sozinho da sala para a cozinha. Chegou perto da pia. Olhou para o lado. Abriu o armário. Tirou uma caixa bem do fundo e dali saíram inúmeras revistas de pornografia & sacanagem, uma para cada espinha no rosto. Quê? Uh!? A mãe dele apareceu e… lá foi o universo pelo ralo.

Amanheceu e outra dor na mente. Mas já tinha visto isso na TV: quem tem um dom especial sempre fica meio debilitado depois de usar seus poderes paranormais. A confirmação de que eu via o futuro veio um mês depois, quando fui chamar o Abel para uma pelada e o coitado disse que estava de castigo em função de outras peladas.

Com o passar do tempo, fui aprendendo a lidar com este grande presente de Baco. Eu bebia, vomitava, previa, porém com alguns avanços surpreendentes. Uma das coisas foi que a data da previsão era sempre equivalente ao ano daquilo que eu tava bebendo. Por isso que o caso Abel aconteceu rápido, uma espécie de futuro do presente em relação a…

– A Antônia.
– Porra, tirou as palavras da minha boca. Como você sabe que eu…
– A Antônia no telefone. Pediu pra você parar de encher a cara e ir dormir.
– Ah! Não enche, Cristóvão. Se você tivesse engravidado essa mulher, também tava aqui bebendo. Anda, coloca isso no gancho e me serve mais desse Uísque paraguaio.

23 de maio de 2007

Satúrnica


Mulheres combinam com jóias. Desde que os homens deixaram de lado a profissão de pirata, acabaram afundando com suas poucas peças sem brilho. Mas mulheres continuaram belas, flutuando com seus baús e guardando muito bem os seus tesouros.

Era por isso que ela não conseguia achar. A primeira regra de se enterrar um tesouro, é fazer uma marca no chão. Pensando bem, não ia ficar bonito uma linha pontilhada começando na porta de entrada, percorrendo toda casa e indo terminar em um “x” no meio do quarto. Pra ser assim, melhor mesmo nem encontrar o… o que é mesmo que ela procura?

- Cadê!!? Nessa caixa? Não… merda.

Mulheres podem ser ótimas com tesouros, mas elas têm que assumir que são poucas as que entendem de mapas e, digamos, sentido de localização. Portanto, não adianta que você, leitor, torça para que ela encontre. Ela não vai. Nem depois desses pulinhos de promessa pra São Longuinho.

- Achei! Não…

A eterna procura de Ana teve seu início quando ainda cabia em uma arca. Estavam todos os amiguinhos brincando de passa-anel, lado a lado, com as mãos espalmadas e unidas. Enquanto isso, o dono provisório do anel foi passando de um em um, bem devagar, com as mãos na mesma posição eclesiástica, bem suavemente, escolhendo com os olhos quem seria o amigo digno de ser o próximo. O passar das mãos fazia cócegas e provocava um acerto arrepio bom, muito bom... e agora? Cadê o anel?

Estava com Ana. Ela conseguia sentir o frio do metal na palma da sua mão e era difícil ter que esconder o sorriso da vitória. Tinha que ter uma postura de jogador de poker 14 anos antes de saber o que isso significava. Porém, não assumiu jamais que o anel estivera com ela. Fugiu dali com o pequeno objeto escondido. Para os adultos que olhavam de fora, a brincadeira havia acabado sem vencedores. Puro engano.

Em um canto, escondida dos últimos olhares desistentes, Ana olhava seu prêmio. Um anel de plástico, desses que piscavam colorido antes da bateria acabar. Fechou os olhos. Começou a juntar saliva como fazia para tomar remédios sem precisar de água e pronto: engoliu.

Após a garganta denunciar o movimento do anel dentro do seu corpo, um leve sorriso se abriu antes mesmo dos seus olhos. Aquilo era seu complemento. Um objeto que não havia nem começo, nem fim. Exatamente como o seu nome.

A cada anel engolido, seu corpo passava por sensações quase indescritíveis. Em uma só noite, foram 5 de uma vez. Uma overdose. Ao dormir, suas alucinações a levaram até as primeiras olimpíadas de Atenas. Um pódio onde os anéis se transformavam no símbolo olímpico. Podia sentir os louros. Sabia do poder daquela pequena roda. Girava, movimentando um moinho, alimentando um vício que se tornou cada vez maior. Uma roda gigante.

Iniciou-se em pequenos saques. Entrava em lojas e fingia bocejar, levando anéis e mais anéis à boca. Sim, era ridículo. Amigos suspeitavam de cleptomania, mas não comentavam. Preferiam o clichê remasterizado de que vão-se os anéis, ficam-se os amigos.

Ana era a única mulher que não usava um único anel e sempre observava as mãos das rivais. Salivava nas festas de pompa.

- Mas o que você olha, Ana?
- Nada. Gosto do jeito como gesticula. Acho bonito.

Em uma dessas festas, conheceu seu noivo. Ela tinha acabado de sair do banheiro com um rosto de felicidade por ter encontrado um anel esquecido na pia por uma das convidadas. Nada mal. O sabão pode até piorar o sabor, mas escorrega que é uma beleza. Seu semblante e energia momentâneos foram suficientes para encantar o rapaz e hoje completam 5 anos de namoro. Por conta do número redondo, ele a chamou para um jantar especial. Sem problemas. Lindo. Mas cadê esse anel? Ela precisava matar aquela vontade antes que…

Din don!
Din don!

Não é possível. Só podia ser ele. Não, não. Pensou em dizer que estava passando mal. Não, não ia adiantar. Ele ia querer entrar. E agora?

Din don!

Olhou para o espelho, tirou do reflexo uma dose de controle e foi abrir a porta. Ele trazia flores e sentiu todo o nervosismo nos olhos dela. Será que ela desconfiava do que ele havia planejado? Provável. Afinal, foram anos e anos de relacionamento antes desse dia. Do grande dia. Sem também conseguir esconder suas mãos trêmulas no bolso, o rapaz tirou de lá uma pequena caixa, abriu e fez a pergunta que se faz a toda noiva.

- Sim, meu amor, era tudo que eu mais queria nessa vida – respondeu Ana com um beijo apaixonado.


Ilustração feita novamente pela designer Chloe Valente.
www.flickr.com/photos/e_valente/
(a gente pediu bis, né?)

17 de maio de 2007

Cama de gato


Isso era uma certeza bem certeira pra todo mundo que tinha pelo menos um olho funcionando na cara: Fabiana era bonita por demais. Negra de uns olhos verdes igual abacate maduro e um corpo feito arte de seringueiro na árvore. Tudo aquilo que se começava de cima, acaba em pernas de quem andava na ponta dos pés no meio da plantação de morango para não estragar a beleza e nem a promiscuidade que acompanhava a junção da fruta mais ela. E não pense que seu vestido não era diminuído pelas mãos para caminhar melhor não. Era por conta da mais pura luxúria de quem descobriu ser mulher faz pouco tempo e tava é gostando e muito disso. Pra quem era mal das vistas, mas tinha seu cheirador funcionando, ela também fazia gente empinar o nariz e ir fechando os olhos bem devagarzinho. Seu rastro era de banho tomado misturado com o perfume que a grama tinha ganhado de presente da chuva. Enquanto nóis criava tudo quanto é tipo de bicho, a dita cultivava suspiros. Era a número um no curral eleitoral da nossa zona da mata e havia uma fila enorme de pretendentes. Tudo trouxa. Fabiana passava com antolhos, mas teve um dia que ela se desviou pra Exclemêncio.

- Tu viu, Exclemêncio!? A Fabiana te quer, rapáze!
- Ah, é?
- É!
- Sei – e olhou pro lado que ninguém olhava.

Ê mania de mãe essa, que bota nome em filho antes de olhar pra cara do rebento. Exclemêncio sempre foi meio abestado e lembro da nossa professorinha que dizia: “Ô guri, presta atenção na aula. Fica aí, o tempo todo olhando pro nada. Você deveria se chamar mesmo era Reticêncio”. Entretanto, preciso deixar claro que existe uma enormidade de diferença entre ser paisagem e não gostar de abacate. Se Exclemêncio não montasse em touro sem alma que foi parido pela ciência, eu diria que o sujeito afrescalhou.

- Quantos dedo têm aqui, Exclemêncio?
- A palavra que tu disseste fora no singular, mas os dedos tão no plural: dois.

Teste 2 (porque sou teimoso):
Meti a mão em um monte de estrume fresco e tentei adubar a cara dele pra ver se a nariga tava em pleno funcionamento. Pois é, tava.

Voltei meus olhos pra reta que os dele faziam e lá na cerca tava Amelinha, a cabra que já tinha sido a responsável pela iniciação de metade do bando que não foi sequer notado por Fabiana. Ele se apaixonou perdidamente pela bicha e alguém estudado disse que era assim mesmo, coisa de química. Sinceramente, até então Amelinha nunca havia me dado pista alguma de que era clone de cabra.

A notícia se espalhou de olho pra nariz, de nariz pra olho e foi parar bem nos ouvidos de Fabiana. E ocê não sabe como é mulher com concorrência? A mulher começou a ferver e apitar feito panela de pressão e já na mesma hora aproveitou o fogo alto pra cozinhar a pobre da rival. Foi a última a comer a Amelinha.

No dia seguinte, Fabiana tava ainda mais bonita. O Zé Curandeiro comentou à boca de sapo miúda que isso era coisa de canibal que come o inimigo pra modo de ganhar os poderes dele.

- Seilá e nem quero saber – respondeu Exclemêncio, que passou a ser também conhecido como o último viúvo de Amelinha.

Eu não acreditei no que eu ouvi naquele instante e o que eu vi mais pra frente: ele, Exclemêncio Dapratrás, se engrançando com uma galinha*. De pio em pio, a mulher ficou sabendo e a galinha não serviu nem pras macumba de Zé.

Exclêmencio Comebicho tratou de arrumar outra namorada que não costumava falar nossa língua e a mulher (depois de uma lua transbordante de tão cheia) se transformou numa matadora de bicho em série. Quem não tava acompanhando a novela, lançou o boato que o tal Chupacabra tava de volta e tinha aumentado sua fome para o animal que aparecesse na frente.

O Ibama já tava procurando o responsável por tudo aquilo quando uma amiga chique de Fabiana resolveu meter o nariz, o olho, o ouvido e a boca na história. Inventou, veja você, de fazer uma festa onde cada um podia ir do que bem entendesse:

Gosta de mágico? Vá de mágico.
Gosta de médico? Vá de médico.
Gosta de boiadeiro? Então nem precisa ir atrás de roupa.

O povo gostou e lá foi todo mundo vestido um mais engraçado que o outro. Tava até difícil de reconhecer o Exclemêncio. Se não fosse por seu andar de viúvo da arca de Noé, eu teria passado direto. Mas quer saber da maior? Isso durou um tantinho de tempo apenas. Seus olhos se arregalaram feito coruja quando viram Fabiana entrar na festa. Ela tava com uma roupa estranha, feita de couro de boi preto que brilhava quando a luz batia. O tal tecido era todo costurado e fazia da mulher a figura de uma gata**.

Exclemêncio pegou Fabiana pelo braço e foi procurar por Toninho, um amigo achegado do pessoal que tava vestido de padre. Casaram ali mesmo e já foram procurar um telhado com uma casa embaixo pra servir de ninho. Hoje, Fabiana já fala em ter uns guris correndo pela casa e Exclemêncio (quem diria) concorda com tudo e ainda vive dizendo que vai puxar o terreno para a criançada poder ter até cachorro. Mas o que ele não nota é que Fabiana sempre segura mais firme na faca. Esse olho aí, Exclemêncio, é amigo do outro.


Notas do autor:
*o personagem não se refere à metáforas ou figuras de linguagem e sim ao animal galináceo e portador de penas.

**Mais uma vez, o personagem se refere ao bichano, não utilizando a palavra para fazer algum tipo de paralelo estético.

Ilustração da amiga e designer Chloe Valente.
www.flickr.com/photos/e_valente/

15 de maio de 2007

Dinheiro no colchão


Hora de dormir. Visto meu pijama de seda com ursinhos estampados, coloco a venda nos olhos para que a luz da manhã não interrompa as projeções do subconsciente antes do esperado, puxo a cordinha do elefantinho-móbile que fica bem acima da minha cabeça e o Trombinha do Trompete começa a tocar uma versão de “Rain drops keep falling on my head” que seria classificada como “fofa” por qualquer menina entre 12 e 19 anos. Tudo pronto? Todos em seus lugares? Me posiciono confortavelmente na minha cama de molas ensacadas Esquilo - 10 anos de garantia ou seu sono de volta - e atenção emissoras para o toque de 12 carneirinhos.

Tu. Tu. Tu. Tu. Tu. Tu. Tu. Tu. Tu. Tu. Tu. Tu…

Pronto, aqui estou eu no meu sonho. Lá atrás temos os montes Apeninos com calda de caramelo no topo, logo ali vemos uma família de sapos que pulam corda e dois ornitorrincos que brincam de “pé-ou-garra”. Conhece essa? É uma espécie de par-ou-ímpar onde eles ficam com os braços pra trás e, ao dizer “três”, colocam a pata de pato ou a garra pra frente.

Opa, calma aí. Não queria parar o conto dessa forma, mas tenho uma dúvida no nível “Pergunta Super Interessante”. Seria pé de pato ou pata de pato? Alguém aqui já fez mergulho? Na única vez em que eu tentei, estava com uma pedra amarrada no pé. No entanto, lembro que os homens que foram me salvar estavam com pé-de-pato. É isso. A palavra certa deve ser “pé”. Além do mais, confundiria o tal membro com a mulher do pato e isso ia acabar dando merda. De pato pra patinho-feio-que-dorme-no-sofá é um pulo.

Por falar em pulo, e o coelho? Ok, você pensou que o assunto tinha acabado, mas essa dúvida merece dois parágrafos. É pata de coelho ou pé de coelho? Cacete, daqui a pouco eu vou descobrir que nós é que temos pata. E aí? Pé ou pata? Acho que é pé e defendo com uma lógica simples: toda pata que dá sorte tem que ser promovida a pé. Pronto. Chega.

Isso équeu preciso: muita sorte. Ou você acha que eu gosto de sonhar para poder ver unicórnios e bichinhos legais? Ah, vai tomar um ácido. Eu sonho para poder vislumbrar uma imensa luz radiante de como ficar milionário. Quero mais é que money notes keep falling on my head.

Certa vez, sonhei que estava chegando de carruagem em um festa. Até aí, eu tinha começado bem, mesmo sem ter motorista. Apesar da chuva de beterraba que estava caindo nessa hora, não deixei o veículo dourado com o manobrista e fui parar na rua mesmo. Levei uns 15 minutos pra fazer a porra da balisa. Tá achando graça? Por acaso já tentou estacionar carruagem? Não tem espelho retrovisor nem muito menos lateral. Quando eu consegui, lá veio o guardador:

- Pode deixar com a gente, monarquia.

Olhei bem para aquele rosto de sapo que não ganhou beijo da princesa e ele complementou com um susurro:

- Quer ficar milionário, não é? Falsifique moedas e assim será.

Depois daquela, nem entrei na festa. E me diz pra quê? Que mané sonho. Dei logo um jeito de acordar me balançando todo. O guardador achou que aquilo fosse uma convulsão estilo Ronaldinho em umas Copas atrás e queria porque queria desenrolar a minha língua com aquela mão suja. Sorte que eu acordei antes.

Quer dizer, sorte uma ova. Pare de ler, vasculhe seu acervo mental cinematográfico e responda: conhece algum bandido que resolveu falsificar dinheiro e escolheu moedas ao invés de notas? Óbvio que não. Só o burro aqui para pensar que isso poderia dar certo. Comprei cobre, uma máquina industrial, contratei dois ajudantes que trabalhavam lavando carro lá embaixo e comecei a produzir. Resultado: para cada 1 Real que eu fiz, gastei 5. Agora pergunta se eu encontrei de novo aquele guardador de carro? Nem em sonho.

Bom, mas essa aqui é uma nova chance. Tá lá os Apeninos, os sapos, os ornitorrincos e eu pelado. Não liguem: eu já me acostumei. No começo fiquei achando que era coisa de mente de tarado reprimida, que essa pouca vergonha era uma forma de botar pra fora. Nada disso. Eu notei que chamava mais atenção no sonho quando estava nu e isso aumentavam as chances de alguém olhar mais pra mim do que para aquelas zebras que ficam contando as litras uma da outra, por exemplo.

Notou quanto bicho tem nesse sonho? Se eu fosse fazer uma fezinha, ia demorar duas décadas para saber em que animal teria que apostar. Xô, contravenção. Sai do meu sonho, seu viado 24. Por falar nisso, lá vem um porco de porcelana todo pintado, mas com aquele futum característico da espécie.

- Oi.
- Oi, amigo – disse com uma voz anasalada porque estava tampando o nariz.
- Sabe aquela história de falsificar moeda?
- Sei.
- Pois é, eu sou o guardador – e remexeu a pança, fazendo tilintar os níqueis lá dentro.
- Ah, não… volta aqui. Vem que eu te quebro, seu filho da puta.

10 de maio de 2007

Cochilo


A profissão de detetive particular não tem horário comercial. Agora são 11 e 45 da noite e estou aqui, atrás dessa samambaia esperando o sujeito aparecer. Esse sujeito tem nome, sei sua alcunha, mas não posso dizer por questões de sigilo. Shhh… silêncio, estômago… que fome. Ele bem que poderia estar jantando em um restaurante. Assim eu ficaria na mesa do lado, consultando o cardápio durante horas para não ser notado. Da última vez que fiz isso, passei por dois vexames:

- Algum problema, senhor? – perguntou o garçom como quem diz “você tem 7.3 de astigmatismo ou é analfabeto?”

Vexame 2: o restaurante era caro demais. Tive que criar uma cláusula de contrato onde pago e peço reembolso depois. No caso de homens adúlteros, já teve caso da mulher olhar pra conta e ainda fazer comentários sobre o quanto o canalha estava gastando com a sirigaita e desandou a falar. E aí você entende porque ele estava gastando aquela nota preta com outra. Mulheres.

Isso me lembrou o dia que estava em missão quando meu celular tocou. Quer dizer, vibrou. Celular de detetive não toca nunca. Era minha mulher.

- O que você está fazendo?
- Trabalhando, Rita.
- Isso são horas? E porque você tá falando baixo?
- Eu estou em cima de um lustre, Rita. Se eu falar alto, todo mundo vai olhar pra cima.

Já reparou que em conversas agitadas de casal tem sempre um que fala o nome da outra pessoa a cada frase? Geralmente é quem está sem saco de discutir pela quinta vez a mesma coisa. Era meu caso. Ela nunca entendeu meu ofício e chegou a dizer que não era possível, que eu tinha outra. Em um desses serões noite afora, estava numa festa e resolvi fazer uma boquinha na mesa de frutas. Peguei um pêssego e vi um olho atrás dele.

- Camargo! O que você tá fazendo aqui!?
- Sua mulher me contratou para saber o que você tá fazendo.

E o que eu ia dizer nessa hora?

- Ok, Camargo. Já viu que eu não tô fazendo nada. Agora deixa eu continuar trabalhando.
- Tá. – e foi embora disfarçado de abacaxi.

Camargo tá certo, coitado. Ele tinha que trabalhar e ainda foi ético. No dia seguinte, ficou meio sem graça e nem teve coragem de olhar na minha cara quando nos encontramos lá na aula de Yoga. A aula é ótima para quem deseja ficar em posições durante horas. Agora, por exemplo, estou atrás dessa samambaia há tempos na posição pernilongo-na-planta-carnívora. Não dá câimbra nem nada. Maravilha de Yoga.

Pra falar a verdade, eu nem sei porque estou atrás dessa planta. O sujeito é sonâmbulo. Bom, pelo menos foi o que disse a mulher dele. Acordava no meio da noite e cadê o marido? Saía por aí e só voltava quase de manhã. Até aí vai lá. O problema foi quando ele passou a chegar com marca de batom na camisa. E como ela ia esfregar aquilo na cara dele? O sujeito estava dormindo, não tinha culpa.

Se bem que eu nunca vi ninguém beijando de olho aberto. Mas também não ia dizer isso para a coitada. Deixa pra lá.

O cara era profissional e não tinha nem essa de ficar andando de braços estendidos, igual sonâmbulo amador. Nunca tinha visto ninguém dormir na direção e não acordar em um poste. Ele não só dirigia, como fazia baliza melhor que a minha mulher.

Pronto, foi só falar nela que o celular toca. Não vou atender, foda-se. Manda o Camargo vir atrás de mim.

Opa, lá vem o sujeito. Estacionou o carro, abriu a porta sem encostar no do lado, deu a volta pela lateral, pulou um cachorro que vinha no sentido oposto, desviou de uma linha de pipa com cerol, rolou por cima do capô para desviar de um motoboy, caiu pro outro lado, abriu a porta para uma loira, sorriu, ela entrou no carro, desviou de um cocô que o mesmo cachorro anterior havia deixado e seu dono porco não limpou, esperou mais três motoboys passarem na frente do carro, abriu a porta do motorista, entrou, ajeitou o espelho (pra quê?), sorriu novamente para a loira, saiu com o carro e – depois de fazer a melhor volta do circuito de Nonstop Place – parou num motel. Sua esposa está certa: o filho-da-mãe tá dormindo com outra.

8 de maio de 2007

Inhame Novo


Não é nada fácil achar um lugar onde todos os prédios têm o mesmo número: 13. Mas ele sabia exatamente onde seus passos iam dar. Só quem conhecia bem a vizinhança não precisava dividir o olhar entre o destino e as oferendas do caminho. Depois que todo bairro foi redesenhado, os quarteirões diminuíram e as esquinas aumentaram para receber mais pratos de barro, farofa e galinha preta. Tudo sempre mal iluminado por velas coloridas de tamanhos que variavam de acordo com o pedido e geralmente amarradas com fitas também coloridas. Nós atados tão fortes quanto a fé.

As cores são as primeiras pistas para entender o resultado que o trabalho precisa atingir. Ninguém até hoje deve ter parado pra contar, mas as velas vermelhas são as prováveis líderes do ranking de vendas e isso só pode querer dizer uma coisa: vai ter gente mal amada assim no inferno. O fato é que o uso das cores deve dar certo para orientar as filas lá em cima, igual guia de boleto. Eu acredito, sabia? Afinal, não conheço um único caso de santo daltônico no mundo. Em alguns casos a confusão celestial pode até acontecer, mas por outro motivo: uma bela garrafa de pinga cheia até o gargalo. Aqui, todos os goles são pro santo.

Melhor dizendo: os goles, as lojas especializadas em pinga e todo resto. Tudo começou na praça da matriz, lugar onde foi construído o primeiro terreiro. Mãe Molequinha do Patuá, sua fundadora, se transformou logo no nome da avenida principal depois que foi encontrar com o preto velho lá pelas bandas de Iansã. Há quem diga que ela já havia tentado fazer um projeto habitacional parecido em mais dois lugares do Rio de Janeiro, mas não deram muito certo. Do sonho sobraram apenas os nomes da Praia da Macumba e de uma cidade litorânea conhecida como Búzios.

Mas o santo dela fazia musculação - sem faltar na academia - e aí estão todas essas ruas e calçadas para recepcionar e proteger seus filhos, como eram chamados todos que resolveram morar por aqui. E não pense você que é coisa barata arrumar um canto no bairro. O pessoal confecciona suas guias com pedras preciosas e costumam acender seus charutos com dólar. O pai desse rapaz era um desses bem de vida e fez questão de acender um autêntico La Flor de Isabela quando ele nasceu. Um mimo dado por Jorge Amado com a recomendação de ser apreciado no momento oportuno.

Sua geração foi uma das primeiras a nascer aqui e ser criada de acordo com as crenças dos ilês. Lembro de ter visto sua apresentação na escolinha, vestido com uma roupa de palha que cobria da cabeça aos pés representando um orixá. No final, o menino virou orixá com um galo na cabeça. Normal, pois não era comum enxergar direito com aquilo e o galo tratou de voltar pro lugar com aquela simpatia de reza e faca esquentada na boca do fogão.

De lá pra cá, o rapaz virou homem, casou, mas continuou sendo apenas um erê para os que o viram crescer. Nunca teve lá muitos problemas na vida por ter cabeça feita e uma forte proteção de Xangô, mas seu corpo não era fechado como se pensava. A porta do peito ficara propositalmente encostada e ela entrou. Moça bonita. Cortava o próprio cabelo para que ninguém ousasse colocar a mão em seu Ori. Apesar de toda sentinela, ele passou a morar na sua cabeça.

Relação intensa. Dezenas de velas vermelhas acesas, espalhadas pelo quarto, e o poder dessa cor você já conhece de parágrafos anteriores. Mas não é sempre que o santo bate assim, de primeira. As primeiras discussões não tardaram a acontecer.

- Não quero...

- Você não tem...

- Não gosto...

- Você é...

- Não é assim...

- Quer saber?...

- Não aceito...

- Muito menos eu...

- Nunca poderia imaginar...

Muitos imaginaram e profetizaram. Estava próximo o dia em que os atabaques iam cantar e a pomba-gira iria baixar forte no rapaz, fazendo com que ele rodasse e rodopiasse a baiana. É, aí danou-se.

- Chega. – Saiu com a roupa do corpo e a guia no pescoço.

Ele foi, mas agora seus passos refaziam o mesmo caminho pisando com a suavidade de um espírito que é íntimo de seu caboclo. Conhecia cada beco com a palma de uma mão que já dizia bastante coisa em quase um terço de sua linha da vida, um pequeno córrego formado pelo suor da ansiedade. Chegou em frente à porta. Rua Oxossi Guerreiro, 13/13F. Respirou fundo. Tentou se perguntar por que estava fazendo aquilo, mas a porta abriu antes de receber a resposta. Ela sorriu como já soubesse: ali estava sua pessoa amada em três dias.