24 de junho de 2007

São seus


- O que você tá fazendo agachada?
- Procurando meus olhos. Quem é você?
- Sou eu, André.
- Ah! Que bom. Cuidado para não pisar e me ajuda aqui a encontrar.
- De que cor eles são mesmo?
- Nossa, dá pra perceber que você nunca reparou mesmo em mim.
- Não começa…
- São verdes, André. Verdes.
- Você já perdeu tanto esses olhos que nem liga mais, né?
- É. Já estou aprendendo até a desenvolver mais os outros sentidos. Você deveria experimentar. Quem sabe seria um pouco mais sensível.
- Nem fala isso. Me dá agonia só de pensar. Se tivesse no seu lugar, já estaria desesperado.
- Não adianta muito espernear. Você não sabe o quanto é difícil chorar sem os olhos.
- Da forma como diz, parece até queu nunca perdi nada.
- Sem essa, André. Você não é o tipo de cara que teve muitos problemas na vida. Muito pelo contrário: esses seus olhos aí foram presente de uma admiradora que eu sei.
- Você insiste nessa merda de história. Eu já não disse que ganhei de um amigo do trabalho?
- Tá achando que eu sou cega?
- Momentâneamente, sim.
- Escuta aqui, André: nenhum amigo homem dá um par de olhos azuis para o outro.
- Não eram azuis. Eram castanhos claros. Como eu já tinha olhos castanhos escuros, resolvi trocar pelos…
- Eu li o bilhete, André.
- Uh?
- “Este é um presente escolhido com muito carinho. Quem sabe assim você passa a olhar para mim com outros olhos”. A vagabunda nem conseguiu sair do clichê.
- Olha…
- Olha você. Você e seus lindos olhos azuis. Acha que eu não percebi que você mudou? Eu conheço todos os meus defeitos muito bem. Mas foi só você trocar seus olhos para as minhas celulites passarem a serem vistas com um neon piscando. Seu nível de exigência ficou inalcançável e…
- Achei.
- Onde, onde?
- Aqui. Me dá sua mão.
- Ufa, ai que bom… mas cadê os seus olhos?
- São os que estão com você. Pode ficar. Eu vou voltar a usar os meus olhos castanhos.
- André…
- Sim.
- Esse seu queixo sempre foi torto assim?

3 de junho de 2007

Identidade


Ele tinha um cachorro chamado Mentira. O pequeno vira-lata havia ganho a divertida alcunha pelo simples fato de ter as pernas curtas. Fiel e amigo como todo cachorro, adorava passear com seu focinho ao vento na janela de Will, seu veloz automóvel que hoje estava ainda mais rápido. Ele tinha pressa em chegar em sua casa na serra, carinhosamente nomeada de Pinha pela proximidade com uma grande floresta de pinheiros. Clara, sua criada há anos, já estava com tudo pronto à sua espera. Na verdade, seu nome era outro e este pseudônimo havia sido inventado por ele ainda criança. Quando pequena, renegara sua cor e vivia a maldizer seus pais. Um dia, fugiu de casa e foi encontrada na esquina por um casal. Naná e Cani eram ótimas pessoas e todos os conheciam por seus apelidos. Eles mesmos se chamavam assim e se diziam rebatizados pela linguagem limitada de seu bebê, o único filho. Para não se sentir só em meio aquela casa enorme, ele tinha o hábito de dar nomes a todos os seus brinquedos: o soldado verde era Ivo, o monstro com nadadeiras era Matilda e a bicleta era Kátia. Seu predileto era o urso Jasão, que dizia o amar quando apertava-lhe o nariz. No entanto, a sirene que ouvira agora, ao chegar na Pinha, era bem diferente de todos os seus brinquedos. Clara chorava ao lado de policiais armados e a ordem era para se entregar. Ele estava preso por falsificação ideológica.