16 de junho de 2010

O outro lado


Meus olhos embaçados não conseguiam enxergar nada além do vazio. A culpa não era da primeira luz do dia, aquela que se esconde da pálpebra e salta na frente da vista como forma sádica de dar bom dia. Não era. Olhando daqui, não dava para ver mais nada do outro lado. Tudo era branco como um lago congelado. Distante. Parecia terminar em um grande abismo, como aqueles mapas antigos do início das navegações.

Meus olhos marejaram e nenhuma mão foi consolá-los, nem mesmo as minhas próprias. Lembro quando a preguiça fazia meus braços esticarem até ultrapassar a invísivel linha entre o bocejo e o sorriso. A boca ganhava o café das mãos de outro por prazer e não como única opção de vida.

Espremo os olhos e o coração aperta. Para o travesseiro, tanto faz a lágrima de uma alma insône ou a baba de um corpo adormecido. Eu não resistia uma noite inteira de olhos fechados, sem ao menos bisbilhotar o outro lado por cima do muro de travesseiros. Hoje, o que se vê é um objeto cansado de segurar uma cabeça quando, em outras épocas, participava das mais divertidas guerras, atacando o outro lado com risadas. Misturávamos as fronteiras. Trocávamos a guarda. Selávamos uniões. Fazíamos acordos para acordar juntos.

Agora, por mais que eu pudesse tentar, não poderia chegar do outro lado. Nunca mais iremos nos encontrar. Não na mesma hora, no mesmo lugar. O outro lado respeita um fuso contrário e não fecha os olhos na mesma hora que eu. Enquanto durmo, me observa não pelo prazer de me ver, mas por cuidado. As risadas ficaram distantes e deram lugar ao som de páginas que folheiam em uma cadeira, misturadas a um som fino que monitora o número de batidas que a saudade impõe ao meu peito.

6 de maio de 2010

A caixa dentro da caixa (bastidores de Seis Lados)


Quando sentei para escrever “seis lados” queria fazer uma metáfora sobre as caixas existem fora e dentro de nós. O nome “Tuto”, dado ao personagem principal, foi uma homenagem a um grande amigo que trabalha como representante de embalagens.

A história tem um pé na escuridão, como a maior parte dos contos dessa minha nova fase. Ela retrata um personagem violento e afetado por problemas psicológicos e poderia estar em um filme de suspense.

É exatamente este ponto que eu queria chegar. Há umas duas semanas, estava em Florianópolis na companhia desse meu amigo. Chovia bastante, não havia muito o que fazer e decidimos ir ao cinema. Chegando lá, compramos duas entradas para o filme “A Caixa”. Ele até riu da coincidência de estarmos os dois vendo um filme que tinha um nome que fazia referência ao conto. Era o tema, o autor e o amigo que tinha emprestado seu apelido ao personagem no mesmo lugar.

O filme é baseado em um conto e a impressão é que teria sido bem melhor se tivesse sido dirigido por David Linch. A história é sobre um homem que bate à porta de uma mulher com uma caixa onde tem um botão. Ele oferece a caixa com a seguinte proposta: caso ela aperte o botão, recebe 1 milhão de dólares. Porém, uma pessoa no mundo morrerá. O excesso de suspense é tão grande que certos momentos provocam mais risadas que medo, mas uma parte foi impressionante: um dos personagens pergunta ao homem do botão o porquê de ser uma caixa. A resposta dele está no vídeo abaixo que eu fiz questão de baixar.



A semelhança com o que eu escrevi fez meu amigo se virar pra mim com um olhar assustado e talvez eu tenha feito uma cara ainda pior. Primeiro, me surpreendi com a semelhança quase literal. Mais tarde, fiquei preocupado com o que os leitores do texto iriam pensar. Fui rapidamente atrás da data de lançamento do filme no país e descobri que foi lançado 5 dias depois da publicação do conto. Ufa.

Neste momento, estou em busca do conto original. Já descobri que ele se chama “Buton, Buton” e foi escrito por Richard Matheson. Minha curiosidade agora é saber se a frase dita no filme existe na literatura e acabar com todo esse suspense.

Abraços,
Rodolfo.

8 de abril de 2010

Seis lados


Ele decidiu fugir no navio. Não havia planejado nada, simplesmente estava em seu habitual andar cabisbaixo quando o som absoluto da buzina da embarcação levantou seu queixo e viu homens que saíram sorrindo e desembarcando caixas gigantes. Foi para casa, arrumou uma mochila e fez como as assistentes de mágico: desapareceu na rua e foi reaparecer dentro do navio, saindo de uma das caixas.

O porão era gelado, mas certamente mais confortável que a vida que levava lá fora. Vendo dessa forma, todas aquelas caixas eram da sua mudança. Ali, seria o rei de um labirinto formado por centenas de objetos empilhados e fechados junto com o segredo do mais novo tripulante.

Segredo que foi quebrado pelo som de um novo número de mágica: de dentro de umas das caixa que estavam logo na frente do porão apareceu sua mulher. Ela se limpou como quem também se livra de um passado e sorriu para ele.

- Você não deveria estar aqui - disse ele.
- Engano seu. Você é que nunca deveria ter saído de lá. Somos apenas um. Eu estou dentro de você.

Ele avançou para cima da mulher e apertou seu pescoço com as mãos, não deixando que o grito saísse do corpo antes da vida. Acompanhou seu rosto perder o ar até não restar mais nada e sentir a solidão novamente como única acompanhante.

O corpo voltou para a caixa de onde havia saído e foi arrastado para o porão da memória. Da barriga materna até o caixão de madeira, a vida inicia e termina em uma caixa. Entre uma e outra, diversas outras caixas de tamanhos e formatos diferentes acompanham a existência. Quando pequeno, abria os presentes que recebia e os deixava de lado para brincar com as caixas coloridas e seus laços de fita. Lembrou que a pessoas moram durante toda uma vida toda dentro de uma caixa chamada casa. Que andam de um lado pro outro dentro de caixas que correm ou voam. Logo também veio à lembrança aquela pequena caixa do anel de noivado que dera à sua mulher. Não. Isso não. Ele não queria nunca mais lembrar disso.

Mas será que agora ele estava seguro? Como poderia ter a certeza de que dentro de todas aquelas outras caixas não estavam seus filhos, mãe, irmãos, amigos ou qualquer um que ele desejava nunca mais ver? Eles poderiam estar todos ali, o cercando, espionando pelas frestas até o momento certo de saírem como aqueles tétricos bonecos-surpresa com molas.

Quando eu vi Tuto pela primeira vez, ele estava sentado no chão de um imenso galpão de uma fábrica de embalagens, suado, ofegante e olhando para baixo com os olhos vidrados. Atrás dele, havia centenas de caixas abertas com seus conteúdos revirados. Desde então, passei a ser terapeuta de um rapaz órfão, que nunca teve nenhum parente ou mesmo foi casado. Todos os cenários, fantasias e personagens que aparentemente ele queria se livrar eram apenas parte dele mesmo, como caixas que saem uma de dentro da outra.

26 de janeiro de 2010

Domingo se vai


Eu caí de você.

Mentira. Eu não caí.

Você me jogou.

Lembro exatamente do dia em que ouvi o eco da minha própria voz desesperada, gritando no vazio dos seus olhos.

Escorri como a lágrima que você nunca chorou.

Todos sabiam que beber dessa água salgada era mortal.

Todos sabiam, menos eu.

Mas tinha certeza que seria em vão a tentativa de me equilibrar em um nariz que sempre aponta pro alto.

Cheguei na sua boca para tentar me despedir.

Mentira.

Eu queria reconciliação em lábios macios, mas eles acharam que o melhor seria cuspir quando deveriam beijar.

Me acertou.

A língua foi um trampolim.

O desejo era cair dentro do seu umbigo para entender essa sua individualidade, mas me espatifei nesse seu abdômen narcisamente perfeito.

Eu fiz de tudo para ser seu reflexo e enguli litros de mágoas, enquanto você fazia sexo sem olhar pra mim.

Tentei te segurar no meu sexo.

Tentei me segurar no seu sexo, mas suas mãos dispensaram minha boca com um movimento de que fariam tudo sozinhas.

Eu queria te chupar pra dentro de mim sem saber o quanto era grande.

Foi então que eu caí de você.

Mentira, já disse. Você me jogou.

Minhas últimas palavras foram sangrando aos seus pés.

Pés que desviaram de mim sem ter pena. Sem olhar pra baixo.

Engano pensar que o mais seguro seria ficar dentro de você.

Nunca fui atirada de um lugar tão alto.

17 de janeiro de 2010

Os quarenta mais eu


Um dia você recebe pelo correio a comunicação de que foi escolhido como um dos Quarenta. Só isso. Você é um dos Quarenta. Não há outras informações. Quarenta o quê? A comunicação não diz.

Você não liga. Deve ser propaganda. Depois certamente chegará um prospecto com ofertas para você, que é um homem de gosto apurado, um homem que, afinal, pertence ao exclusivo grupo dos Quarenta etc. Talvez seja uma coleção de livros ou uma linha de artigos de toalete, a preços especiais para 40 privilegiados como você.

Mas não. Durante muito tempo você não recebe mais nada. Até esquece do assunto. E um dia recebe pelo correio um cartão bem impresso, em relevo, com seu nome seguido da frase “Um dos Quarenta” e num canto o número 26.

Como o primeiro envelope, este não tem nem o nome nem o endereço do remetente. Aí você se dá conta de que também não há carimbo do correio. O envelope foi entregue diretamente na sua porta.

Você fica intrigado. Pergunta a amigos se eles sabem alguma coisa sobre os Quarenta.

- Quarenta o quê?

Você não sabe. Só sabe que é um deles. Ninguém jamais ouviu falar nos Quarenta. Ninguém das suas relações recebeu nada parecido. Você começa a fazer fantasias. Pertence a uma elite, mesmo que não saiba qual. As 40 pessoas mais… o quê? Não importa. Você é um dos 40 mais alguma coisa do Brasil. Ou será do mundo? Há algo que o distingue do resto da humanidade. Por quê, você não sabe. Quem o escolheu? Também não sabe. Mas não deixa de ser uma sensação boa se sentir um dos Quarenta. Nem todo mundo pode ser um dos Quarenta. Só 40.

Você começa a usar seu cartão dos Quarenta na carteira. Quem sabe? Um dia ele pode servir para alguma coisa.

- Você sabe com quem está falando? Sou um dos Quarenta.

Passam-se meses e chega outra informação. Haverá uma reunião dos Quarenta! Você deve aguardar informações sobre local, data, transporte, acomodações…

Sua curiosidade aumenta. Você finalmente vai conhecer a misteriosa irmandade à qual pertence. Quem serão os outros 39?

Mas as informações não chegam. Chega, um dia, um telegrama. Também sem nome ou endereço de remetente. O telegrama diz:

“NÃO VAH REUNIÃO QUARENTA PT EH ARMADILHA”.

É brincadeira. Agora você sabe que é brincadeira. Mas que brincadeira boba e cara, com telegramas, cartões em relevo…

No dia seguinte, toca o telefone. É noite, você está sozinho em casa, e toca o telefone. Você atende.

É uma voz engasgada. A voz de um homem agonizante.

- Fuja… – diz a voz, com muito esforço.
- O quê?
- Fuja! Eles estão nos eliminando, um a um…
- Que-quem são eles?
- Não interessa. Fuja enquanto é tempo!
- Mas eu…
- Não perca tempo! Eles me pegaram. Estou liquidado.
- Quem é você?
- O número 25…

Há um silêncio. Depois você ouve pelo fone o ruído borbulhante que faz o sangue quando sobe pela garganta de alguém. Você precisa saber uma coisa.

Você grita:
- Quem somos nós?

Mas agora o silêncio do outro lado é completo.
E então você vê que estão tentando forçar a sua porta.


*


A porta estava sendo forçada de uma forma estranha. Um matador em série não seria tão estúpido a ponto de fazer tanto barulho com uma maçaneta. Seria sutil. Um homem sutil com um clip de papel que entraria perfeitamente na fechadura e clic. Afinal, morrer pode ser ruim, mas o pior é ser morto por um amador. Tá pensando que está matando quem? Eu sou um dos 40. Um dos 40 que vão para um lugar lá em cima. Um lugar especial. Será? Será que ser um dos 40 também se extende para o céu e outras dimensões? Existe aquele ditado bobo que nada se leva dessa vida, mas eu vou deixar a cateira no bolso só por precaução. Chegando lá eu apresento e tento me identificar como alguém que foi escolhido através de um importante processo de seleção.

Será que ele está fazendo seu trabalho em ordem uma ordem específica ou mata conforme esbarra com a pessoa? Sim, porque as possibilidades são inúmeras. Ele poderia começar pelos pares ou, sei lá, pelos números primos. Dois é primo? Acho que sim, mas é sempre difícil tentar fazer conta quando tem alguém querendo arrombar sua porta. E não estou falando aí do medo de morrer não. É esse barulho repetitivo irritante que acaba tirando a concentração.

Quantos já teriam morrido? Será que eu vou ter que ligar para o próximo da lista também? Será que ele vai entrar com um daqueles globos da lotérica para que eu sorteie o próximo a empacotar?

“Olá, estamos aqui para mais um sorteio e chamo aqui o Eduardo, um dos convidados da platéia para que ele nos ajude. Vamos lá… está saindo o número… opa! Já temos a próxima vítima, vamos passar agora para nosso auditor… e está ok! O próximo a morrer é o número 32! Parabéns. Aguarde que o próprio Eduardo vai ligar pra você dentro de instantes e, quando menos você esperar, a morte estará batendo na sua porta!”

Sinceramente, eu estou achando que esse clube tem muitas perguntas e poucas respostas. É um absurdo. Somos os escolhidos e deveríamos ter o mínimo de informação. Os mortos ou quase-mortos merecem respeito. E essa demora para abrir a porta e acabar logo com isso? Até os condenados à pena de morte sofrem menos. O sujeito demora tanto que, ao abrir a porta, já estarei estatelado no chão. Causa mortis: úlcera.

Bom, chega. Vou lá facilitar as coisas. Abro a porta, me apresento e pergunto logo pra quem eu tenho que ligar. Estou preparado para o meu fim.

- Sim. Eu sou o número 26. Acabe logo com isso, seu assassino inescrupu… inescrupulosa? Você é uma mulher? Nunca pensei que seria uma mulher…
- Oi. Esse não é o 42?
- Não. Sou o 26 e, para sua informação, os escolhidos vão somente até o número 40.
- 26? Mas aqui na porta diz que é o… ai, desculpa! Pensei que fosse o meu apartamento! Já tava há horas tentando encaixar essa madilta chave na porta.
- Você é minha vizinha?
- Sim, mas foi sem querer que…
- Ok. Esquece.
- Desculpe mesmo. Eu…
- O que é isso embaixo do seu pé?
- Ah, ai… eu ainda tô aqui pisoteando sua correspondência…
- Você pode tirar o pé de cima?
- Ah, claro. Olha, você não faz ideia da vergonha que eu tô de…
- Ok. Boa tarde.

Mais uma carta. Mais um papel com letras douradas.

“Após revisarmos alguns critérios em nossos processos de seleção, informamos que o Senhor está fora do clube por questões de incompatibilidade de perfil. Esperamos que não se sinta lesado de forma alguma e entraremos novamente em contato quando novas vagas forem abertas.”

Mas o que eu fiz? Porquê? Nem se importam em dizer se eu fiquei classificado em quadragésimo primeiro ou ducentésimo quinto. Quer saber? Eu não preciso de nenhum clubinho killer segregacionista pra me matar. Deixa que essa minha própria vida se encarrega disso.


* até este ponto, o texto é do Veríssimo.

2 de janeiro de 2010

Flores ou Velas


O corpo estava fechado naquela caixa de madeira e tudo em volta tinha um cheiro de cera derretida e flores brancas. Naquele concurso de quem fazia o rosto mais infeliz, seu olhar estava pensando nas compras do supermercado. Um semblante tão vazio quanto a prateleira de produtos de limpeza. Indiferença que se escondia atrás de óculos escuros.

Minha cabeça baixa não era por tristeza e sim porque eu estava olhando para suas pernas. Poderia ter aproveitado a presença do padre para confessar mais esse pecado e erguer um brinde ao defunto antes de virar o vinho do cálice, garantindo de vez que a hostess do inferno me chamaria pelo nome ao aparecer por lá. Queria poder sorrir, beber e conversar sobre as coisas boas dessa vida, mas em alguma parede daquela capela tinha um cartaz dizendo ser proíbido. Aquelas foram as regras tolas que seguimos durante toda manhã, mesmo sabendo que nenhum de nós tinha o menor sentimento por aquele filho-da-puta.

No dia seguinte, mandei um buquê para sua casa acompanhado de um bilhete: “Eram pra ele, mas aprendi que flores cortadas não podem ser enterradas de volta”. No meio da noite, você ligou para agradecer. Disse que havia retirado as pétalas e preparado um banho com velas acesas em volta para sentir o mesmo cheiro do cemitério. Pensei em suas pernas, dentro da banheira, saindo e voltando para a água morna apenas para sentir a diferença de temperatura entre a realidade e o seu mundo. Perguntei porque eu estava ouvindo aquele eco. Você explicou que o celular estava no viva-voz para deixar as mãos livres enquanto ouvia a minha voz.

Aceitei com uma certa facilidade o convite interativo na sua brincadeira particular. Fui até a janela em busca de uma inspiração vouyer e assim comecei a dizer tudo que estava louco para fazer com você em um ritmo lento, calmo e rouco. Minhas palavras se misturaram ao som do seu corpo mexendo na água e à uma respiração que foi se tornando cada vez mais forte. Seus gemidos estreitos denunciavam que os olhos estavam fechados, enquanto a cabeça acompanhava os movimentos circulares dos dedos.

Seu ritmo era constante e alternado, ora mais forte, ora mais lento, como algo composto por Vivaldi. Com um pouco mais de concentração, você chegou no ponto e momento certos. Foi nesse instante que a respiração transbordou, as pálpebras oscilaram com força e o peito deixou o ar escapar através de uma boca entreaberta. Um gemido final fez seu rosto se esfregar na borda húmida da banheira. Eu fiquei mudo por alguns segundos até o silêncio ser quebrado pelo som de um isqueiro. Nossa conversa durou o tempo exato de um cigarro.

No dia seguinte, combinamos de nos encontrar no alto da torre. Ventava muito e seu cabelo chicoteava o rosto, denunciando uma ansiedade que o restante do seu corpo tentava esconder. Seus braços estavam arrepiados como aqueles que saem de uma banheira já procurando pela toalha.

As poucas palavras que saiam da boca se agarravam ao momento, mas logo eram arrastadas pelo vento como um papel que fugiu da mão por timidez. Uma timidez se transformou em um beijo no rosto e me dei conta que aquela foi a primeira vez que a gente se cumprimentou. O tato foi nosso último muro e ele caiu para dar lugar a um abraço longo. Foi quando senti essa cicatriz que faz um caminho enorme nas suas costas. Eu gosto dela, você sabe. Gosto apesar de nunca ter me contado até hoje o que realmente aconteceu. Ao invés disso, sempre transforma a dor em poesia, repetindo que alguém havia tentado tirar seu coração da pior maneira possível.

O abraço terminou dando início a um sorriso que disse precisar de mim da forma mais maliciosa que eu poderia imaginar. O sorriso veio acompanhado de um envelope que foi retirado da bolsa e entregue em mãos. Era algo já lido, mexido, amarrotado. Enquanto eu fazia uma cara de quem não tinha a menor ideia do que aquilo se tratava, seus olhos estavam aguardando a minha reação. Ali dentro havia uma única folha de papel. Era um documento, um testamento. Aquele maldito tinha deixado tudo para você, mas com uma condição: você teria que acabar com a minha vida.

O papel voou das minhas mãos ficando apenas a dúvida se a fragrância do momento seguinte seria de flores ou velas.