16 de novembro de 2008

Fechados


Não olhou. Deu um passo, outro, até desaparecer da vida dela. Talvez ele tivesse pedido a si mesmo que ela chamasse por seu nome, mas nunca irão saber. O que apenas sabe é que não se deve acreditar em um órgão que nunca viu mesmo quando insiste em bater forte no peito.

Olhou para frente militarmente: vidrado e com uma determinação cega no lugar do que seria um sentimento. Não via os carros que passavam sem limites nem a calçada do outro lado por ter a certeza de que não chegaria até lá.

Chega.
Feche os olhos e faça o que deve ser feito.

Deu um passo, outro, e pediu a si mesmo que alguém lhe chamasse. Ela, talvez. Se isto aconteceu, ele nunca iria escutar. As buzinas gritavam alto demais enquanto desviavam do seu corpo, soprando a música de ventos mortais.

Mais um passo, xingamentos e seus olhos cerrados. Quantos mais teria que andar até alcançar o fim? Curiosos pararam para assistir. Os demais, assim como ele, preferiram não ver o que certamente estava para acontecer.

Os próximos passos foram semelhantes aos de um homem sentenciado à morte. Trêmulos, lentos, suados. Mais um, dois, três e - ao invés da morte - ouviu aplausos.

Ao abrir os olhos, percebeu que estava do outro lado da calçada. Como? Olhou para trás e viu o nervosismo de um trânsito sem fim, sem sinal, sem paradas. Como? As pessoas o aplaudiam como em um número de circo.

Chegou em casa pensativo e teve que encarar um derrotado no espelho do banheiro. Não tinha a menor vontade de comer, dormir, tomar banho ou os demais clichês diários. Pegou a lâmina de barbear e fechou os olhos.

A lâmina afiada cruzava seu rosto. Merecia ser punido. As pessoas passariam a olhar sua cara navalhada com repugnância e aversão. Sim. Não. Nada aconteceu. Abriu os olhos e notou que nunca tinha feito a barba tão bem. Não havia nem um corte ou sangue.

Não conseguia acreditar no que estava acontecendo. Precisava se matar ou contar a alguém. Entrou no carro com os dois objetivos na cabeça. Deu a partida, fechou os olhos e engatou a primeira.

Foram mais de 6 quilômetros sem abrir os olhos. Fizera todas as curvas com perfeição e freou apenas ao chegar na casa do melhor amigo. Estava vivo.

- Tenho tentando me matar.
- Percebo e posso dizer que ainda não alcançou o feito.
- Escuta, porra. É sério. Fecho os olhos, tento me matar, mas nada acontece.
- E porque fecha os olhos?
- Gosto muito de mim. Não gostaria de me ver morrer.
- E veio aqui pra tentar me provar essa loucura?
- Tinha que dividir isso com alguém.
- Ótimo. E se você estiver errado eu vou ver o meu melhor amigo se matando na minha frente. Obrigado, acabei de jantar.

Ele deixou a casa do amigo. Ao invés de dar provas, recebeu o cartão de um psiquiatra.

Dias depois, lá ele estava no alto de um prédio. Ao olhar para baixo, viu apenas carros que corriam bem pequenos. Encheu os pulmões de ar e suspirou com a força de quem gostaria de retirar a alma de dentro do seu corpo. Bombeiros, polícia, multidão e a mídia faziam cada qual seu papel. Olhou para frente e viu a corda que ligava um prédio ao outro. Fechou os olhos e simplesmente andou.

Alguns passos depois e ele já estava dentro de estúdios, dando entrevistas para os principais canais do país. Passou a fazer números em turnês por todos os continentes e recebeu aplausos em diversas línguas. Foi em uma dessas apresentações que seus olhos encontraram outros que deram uma leve piscada.

Na mesma noite, marcaram de se encontrar no ponto mais alto da ponte. Ela estava linda e seus olhos a acompanharam até chegar bem na frente. Só restava um passo. Fechou os olhos e a beijou.

Na opinião dela, aquele havia sido o pior beijo da sua vida. Não saberia explicar. Preferiu abrir os olhos e colocar a mão espalmada no peito dele. Nada disse. Deu um passo, outro, até desaparecer da vida do homem.

Sem esperanças de que ela chamasse seu nome, se jogou da ponte de olhos abertos.

23 de julho de 2008

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Tinha o hobby de escrever sobre linhas extremamente perigosas. Dissertava longos poemas por trilhos que apitavam com insistência de quem não queria ferir, mas infelizmente não poderia parar. Suas sílabas nem ao menos gaguejavam. Permaneciam imóveis como se estivessem amarradas com cordas fortes, porém eloquentes como se não existissem panos em suas bocas.

Eloquencia sem tremer nem trema. A extensa pauta de seus cadernos era um imenso precipício, um abismo de onde empurrava suas vogais com violência. Era preciso. Elas haviam de aprender a se multiplicarem a partir do eco.

Ao término de cada linha, amarrava anzóis pontiagudos e sadomasoquistas que possuíam a maldade de pescar as hifenizações. O complemento da palavra olhava para a linha de cima com dor, mas seguia forte mesmo tendo que ser lido de forma abrupta. Seus leitores empenhavam-se em suportar a tinta vermelha que pingava sobre o papel branco, transformando em acentos graves o que antes era craseado com uma certa dúvida.

Usava os vocábulos que bem entendia. Não se importava em cansar palavras por conta de seus vícios de linguagem e gírias superficiais. Enquanto algumas eram soletradas diariamente, outras caíam vertiginosamente em desuso. Seu destino era o calabouço das páginas esquecidas do dicionário. A palavra nunca fugia do seu raciocínio e cumpria sua pena até o dia em que o autor picotava as linhas, escrevia algumas letras em espaços pontilhados e condenava vosmicê à forca.

11 de julho de 2008

Paladares


Quando a língua saiu, ela sabia exatamente o que ia fazer. Contou apenas até 1 e atirou-se em direção à outra casa com a intimidade de quem já tinha estado ali inúmeras vezes. Havia estudado aquele ambiente meticulosamente durante anos em simulações de guerrilha no gelo e conseguiria encontrar seu ponto de contato de olhos fechados. A senha foi traduzida em forma de um beijo demorado. Aquele seria o posto de informações para tudo que viria acontecer a partir dali. Seus riscos e acertos dependiam de forma crucial daquele primeiro encontro.

O beijo tornou-se despedida ao menos momentaneamente. Deixou o recinto sem nada dizer e partiu ao encontro da pele, deslizando até sentir o gosto francês da fragrância localizada de forma premeditada. Havia conseguido as pistas até aquele lugar através de feromônios muito bem informados.

Sua presença era sempre uma grande surpresa. Os pêlos levantaram-se todos ao mesmo tempo, mas não ousaram correr. O exército, como um todo, ficou à mercê de um ataque que não exitou em passar simplesmente por cima.

Após alguns momentos de tortura, a íris contou o que língua nenhuma diria de forma tão fácil. Ela estava a poucos centímetros do que seria seu objetivo final ou início de tudo. E sabia, acima de qualquer coisa, que teria que agir com absoluta precisão.

13 de junho de 2008

Dois Corações


“Estamos aqui, na Maternidade Santa Maricota, lugar onde acaba de nascer o primeiro bebê com dois corações do mundo. Olá, tudo bem? Aqui ao meu lado temos o médico que…”

Ele nasceu filho da notícia. Em um mundo onde é cada vez mais normal ter gente sem coração, aparece logo um moleque com dois. Sensacional. Nem preciso dizer que tava todo mundo amontoado na frente do hospital. Volume parecido de gente nunca tinha acontecido igual. Nem mesmo quando o circo chegou trazendo mulher barbada e elefante anão. Foi um alvoroço naquele lugar esquecido por Deus. Uma cidade tão esquecida que ninguém mais lembrava o nome e acabaram rebatizando-a de Dois Corações.

“… mas, doutor, o que é melhor fazer agora? Corre risco de vida? Ele fica ou não com os corações?”

O sim prevaleceu e lá foi Severino ser escolhido para viver uma vida toda com ventrículos e átrios em dobro. Nos tempos de escola, perfilava junto aos demais alunos para o hino nacional. Apesar de nunca ter decorado a segunda parte da letra e alguns pedaços retumbantes, era o único que não corria o risco de errar a mão em relação ao lado certo do peito.

Toda essa fama fazia com que a íris das meninas refletissem pequenos corações que iam flutuando até estourarem em um desesprezo qualquer.

Ele não tinha o mínimo interesse no amor e não adianta ficar assuntando no ouvido. Não que o sucesso havia subido à cabeça, nada disso. A vontade de ter uma namorada ou um relacionamento em categoria aspirante não era merecedor de muita atenção e pronto.

Severino era dado a outros prazeres. Entre os preferidos, comer até se empanturrar. Encher o bucho pra valer - que, por sinal - era um só. Nada de alimentação com ômega 3 enriquecido com 8 mineirais e cálcio. Sua especialidade era gordura equilibrada com frituras da pior qualidade. Aí já sabe: um dia Severino teve um treco comendo uma coxinha no boteco.

E lá se foi o tumulto pro hospital novamente. O pessoal do folhetim já tava lá de prontidão, quando o médico saiu.

“Severino passa bem. Fizemos a cirurgia de modo que…”

O danado teve foi sorte. Enquanto um coração tava entupido, o outro continuou fazendo seu trabalho, livrando Severino da morte certa. No dia seguinte, o cabra saiu andando do hospital mas não tinha mais uma alma viva lá fora. Afinal, que graça tem um homem com um coração só?

Em meio à uma cidade que pulsava invonluntariamente, sentiu, pela primeira vez, um vazio no peito. Olhou para os lados, escolheu um caminho e seguiu em busca de um outro coração para bater bem perto do dele.

18 de maio de 2008

êcoV


Esses pedaços de vidro que ganham o nobre dom de refletir possuem a crueldade de simplesmente mostrar sem nada dizer, apontando defeitos da forma mais blasé possível.

- Quem é você? Hein? Apesar de ter moldura, está longe de ser uma obra de arte – e respondeu da mesma forma telepática, sem balbuciar uma vogal.

Seu desejo era quebrar o espelho, mas pensou em todos os anos de azar que viria somar-se aos que já haviam sob seus ombros.

- Eu já ando bem pesada com meus ganhos materiais.

Os seres humanos crescem como árvores: ao longo dos anos, a idade passa a ser proporcional ao diâmetro do tronco. Ela queria ser uma roseira e casar com o cravo. Colocaria seu vestido amarelo para o civil, o branco para a igreja e uma lingerie vermelha colombiana para as núpcias.

- Será que não existe mais homem sensível nesse mundo? Será que o último inventado foi Chico Buarque? Será? A merda do Chico é que ele entende tudo de mim, mas poderia me ouvir ao invés de só cantar.

O peso é excludente.

- Desculpe, senhorita, mas aqui você não entra. Tente outro jeans.
- Como não? Esse jeans é meu. Entrei aí durante décadas.
- Entendo, senhorita. Você pode tentar entrar sem problemas, mas o convite não é extensivo a acompanhantes. Essas gordurinhas vão ter que ficar do lado de fora.

Ela não se surpreendia mais com esse tipo de tratamento. Achava até uma coisa normal. No começo, eram apenas elogios. Sorriam um para o outro, entre giros de lá pra cá.

- Sinceramente? Se espelho fosse um objeto sensível, não seria masculino. Seu merda.

Colocou um vestido preto com a ilusão de que emagrece. Abriu a caixa redonda e retirou um chapéu pontudo. Pegou uma cesta, encheu de maçãs e saiu. Os mais belos reflexos estão com os dias contados.




Esta foto linda é da talentosa Anna Luiza Fischer.
Dêem uma olhada em todas aqui.

28 de abril de 2008

Pêndulo


Olhou pro alto e viu seus pés.

Não havia o que fazer naquele mundo invertido a não ser esperar. Poderia fumar um cigarro até alguém chegar, talvez. Ou quem sabe pegar o celular. Nos dias de hoje, as pessoas que não fumam pegam o celular quando estão esperando. Olham para ver se alguém ligou, se existe alguma mensagem ou simplesmente para saber a hora.

Sim, fazia horas que ele estava pendurado. Se fumasse, já teria facilmente queimado a corda. Se tivesse um celular naquele momento, já teria ligado e pedido ajuda. Se tivesse os dois, já teria feito uma messagem de fumaça McGyver, unindo o fogo do isqueiro ao aparelho. Várias soluções teóricas e nenhuma prática em sua mente inchada pelo sangue que corria pra cabeça.

Olhou pro alto e viu o galho da árvore.

Nunca havia torcido tanto para uma árvore cair. Se tivesse comido mais carne e fritura ao invés de salada, pesaria mais e aumentaria as chances dela cair. Era chegada a hora da vingança da árvore por todas as folhas que comeu na sua vida. Desista. É mais fácil esse galho aprender a brincar de iôiô com você.

Aquilo seria seu fim. Sentia a angústia e a solidão de uma espera por nada. Não podia nem sequer se concentrar para o que filme da sua vida passasse em sua cabeça febril. Um grito? Ninguém pode ouvir você e não existe nada que…

- Carrrrrrlinhhooooooosssss!
- Que é mãe!
- Pára de brincar com esse balanço e vem logo comer.
- É salada?