13 de junho de 2008

Dois Corações


“Estamos aqui, na Maternidade Santa Maricota, lugar onde acaba de nascer o primeiro bebê com dois corações do mundo. Olá, tudo bem? Aqui ao meu lado temos o médico que…”

Ele nasceu filho da notícia. Em um mundo onde é cada vez mais normal ter gente sem coração, aparece logo um moleque com dois. Sensacional. Nem preciso dizer que tava todo mundo amontoado na frente do hospital. Volume parecido de gente nunca tinha acontecido igual. Nem mesmo quando o circo chegou trazendo mulher barbada e elefante anão. Foi um alvoroço naquele lugar esquecido por Deus. Uma cidade tão esquecida que ninguém mais lembrava o nome e acabaram rebatizando-a de Dois Corações.

“… mas, doutor, o que é melhor fazer agora? Corre risco de vida? Ele fica ou não com os corações?”

O sim prevaleceu e lá foi Severino ser escolhido para viver uma vida toda com ventrículos e átrios em dobro. Nos tempos de escola, perfilava junto aos demais alunos para o hino nacional. Apesar de nunca ter decorado a segunda parte da letra e alguns pedaços retumbantes, era o único que não corria o risco de errar a mão em relação ao lado certo do peito.

Toda essa fama fazia com que a íris das meninas refletissem pequenos corações que iam flutuando até estourarem em um desesprezo qualquer.

Ele não tinha o mínimo interesse no amor e não adianta ficar assuntando no ouvido. Não que o sucesso havia subido à cabeça, nada disso. A vontade de ter uma namorada ou um relacionamento em categoria aspirante não era merecedor de muita atenção e pronto.

Severino era dado a outros prazeres. Entre os preferidos, comer até se empanturrar. Encher o bucho pra valer - que, por sinal - era um só. Nada de alimentação com ômega 3 enriquecido com 8 mineirais e cálcio. Sua especialidade era gordura equilibrada com frituras da pior qualidade. Aí já sabe: um dia Severino teve um treco comendo uma coxinha no boteco.

E lá se foi o tumulto pro hospital novamente. O pessoal do folhetim já tava lá de prontidão, quando o médico saiu.

“Severino passa bem. Fizemos a cirurgia de modo que…”

O danado teve foi sorte. Enquanto um coração tava entupido, o outro continuou fazendo seu trabalho, livrando Severino da morte certa. No dia seguinte, o cabra saiu andando do hospital mas não tinha mais uma alma viva lá fora. Afinal, que graça tem um homem com um coração só?

Em meio à uma cidade que pulsava invonluntariamente, sentiu, pela primeira vez, um vazio no peito. Olhou para os lados, escolheu um caminho e seguiu em busca de um outro coração para bater bem perto do dele.