16 de junho de 2010

O outro lado


Meus olhos embaçados não conseguiam enxergar nada além do vazio. A culpa não era da primeira luz do dia, aquela que se esconde da pálpebra e salta na frente da vista como forma sádica de dar bom dia. Não era. Olhando daqui, não dava para ver mais nada do outro lado. Tudo era branco como um lago congelado. Distante. Parecia terminar em um grande abismo, como aqueles mapas antigos do início das navegações.

Meus olhos marejaram e nenhuma mão foi consolá-los, nem mesmo as minhas próprias. Lembro quando a preguiça fazia meus braços esticarem até ultrapassar a invísivel linha entre o bocejo e o sorriso. A boca ganhava o café das mãos de outro por prazer e não como única opção de vida.

Espremo os olhos e o coração aperta. Para o travesseiro, tanto faz a lágrima de uma alma insône ou a baba de um corpo adormecido. Eu não resistia uma noite inteira de olhos fechados, sem ao menos bisbilhotar o outro lado por cima do muro de travesseiros. Hoje, o que se vê é um objeto cansado de segurar uma cabeça quando, em outras épocas, participava das mais divertidas guerras, atacando o outro lado com risadas. Misturávamos as fronteiras. Trocávamos a guarda. Selávamos uniões. Fazíamos acordos para acordar juntos.

Agora, por mais que eu pudesse tentar, não poderia chegar do outro lado. Nunca mais iremos nos encontrar. Não na mesma hora, no mesmo lugar. O outro lado respeita um fuso contrário e não fecha os olhos na mesma hora que eu. Enquanto durmo, me observa não pelo prazer de me ver, mas por cuidado. As risadas ficaram distantes e deram lugar ao som de páginas que folheiam em uma cadeira, misturadas a um som fino que monitora o número de batidas que a saudade impõe ao meu peito.

6 de maio de 2010

A caixa dentro da caixa (bastidores de Seis Lados)


Quando sentei para escrever “seis lados” queria fazer uma metáfora sobre as caixas existem fora e dentro de nós. O nome “Tuto”, dado ao personagem principal, foi uma homenagem a um grande amigo que trabalha como representante de embalagens.

A história tem um pé na escuridão, como a maior parte dos contos dessa minha nova fase. Ela retrata um personagem violento e afetado por problemas psicológicos e poderia estar em um filme de suspense.

É exatamente este ponto que eu queria chegar. Há umas duas semanas, estava em Florianópolis na companhia desse meu amigo. Chovia bastante, não havia muito o que fazer e decidimos ir ao cinema. Chegando lá, compramos duas entradas para o filme “A Caixa”. Ele até riu da coincidência de estarmos os dois vendo um filme que tinha um nome que fazia referência ao conto. Era o tema, o autor e o amigo que tinha emprestado seu apelido ao personagem no mesmo lugar.

O filme é baseado em um conto e a impressão é que teria sido bem melhor se tivesse sido dirigido por David Linch. A história é sobre um homem que bate à porta de uma mulher com uma caixa onde tem um botão. Ele oferece a caixa com a seguinte proposta: caso ela aperte o botão, recebe 1 milhão de dólares. Porém, uma pessoa no mundo morrerá. O excesso de suspense é tão grande que certos momentos provocam mais risadas que medo, mas uma parte foi impressionante: um dos personagens pergunta ao homem do botão o porquê de ser uma caixa. A resposta dele está no vídeo abaixo que eu fiz questão de baixar.



A semelhança com o que eu escrevi fez meu amigo se virar pra mim com um olhar assustado e talvez eu tenha feito uma cara ainda pior. Primeiro, me surpreendi com a semelhança quase literal. Mais tarde, fiquei preocupado com o que os leitores do texto iriam pensar. Fui rapidamente atrás da data de lançamento do filme no país e descobri que foi lançado 5 dias depois da publicação do conto. Ufa.

Neste momento, estou em busca do conto original. Já descobri que ele se chama “Buton, Buton” e foi escrito por Richard Matheson. Minha curiosidade agora é saber se a frase dita no filme existe na literatura e acabar com todo esse suspense.

Abraços,
Rodolfo.

8 de abril de 2010

Seis lados


Ele decidiu fugir no navio. Não havia planejado nada, simplesmente estava em seu habitual andar cabisbaixo quando o som absoluto da buzina da embarcação levantou seu queixo e viu homens que saíram sorrindo e desembarcando caixas gigantes. Foi para casa, arrumou uma mochila e fez como as assistentes de mágico: desapareceu na rua e foi reaparecer dentro do navio, saindo de uma das caixas.

O porão era gelado, mas certamente mais confortável que a vida que levava lá fora. Vendo dessa forma, todas aquelas caixas eram da sua mudança. Ali, seria o rei de um labirinto formado por centenas de objetos empilhados e fechados junto com o segredo do mais novo tripulante.

Segredo que foi quebrado pelo som de um novo número de mágica: de dentro de umas das caixa que estavam logo na frente do porão apareceu sua mulher. Ela se limpou como quem também se livra de um passado e sorriu para ele.

- Você não deveria estar aqui - disse ele.
- Engano seu. Você é que nunca deveria ter saído de lá. Somos apenas um. Eu estou dentro de você.

Ele avançou para cima da mulher e apertou seu pescoço com as mãos, não deixando que o grito saísse do corpo antes da vida. Acompanhou seu rosto perder o ar até não restar mais nada e sentir a solidão novamente como única acompanhante.

O corpo voltou para a caixa de onde havia saído e foi arrastado para o porão da memória. Da barriga materna até o caixão de madeira, a vida inicia e termina em uma caixa. Entre uma e outra, diversas outras caixas de tamanhos e formatos diferentes acompanham a existência. Quando pequeno, abria os presentes que recebia e os deixava de lado para brincar com as caixas coloridas e seus laços de fita. Lembrou que a pessoas moram durante toda uma vida toda dentro de uma caixa chamada casa. Que andam de um lado pro outro dentro de caixas que correm ou voam. Logo também veio à lembrança aquela pequena caixa do anel de noivado que dera à sua mulher. Não. Isso não. Ele não queria nunca mais lembrar disso.

Mas será que agora ele estava seguro? Como poderia ter a certeza de que dentro de todas aquelas outras caixas não estavam seus filhos, mãe, irmãos, amigos ou qualquer um que ele desejava nunca mais ver? Eles poderiam estar todos ali, o cercando, espionando pelas frestas até o momento certo de saírem como aqueles tétricos bonecos-surpresa com molas.

Quando eu vi Tuto pela primeira vez, ele estava sentado no chão de um imenso galpão de uma fábrica de embalagens, suado, ofegante e olhando para baixo com os olhos vidrados. Atrás dele, havia centenas de caixas abertas com seus conteúdos revirados. Desde então, passei a ser terapeuta de um rapaz órfão, que nunca teve nenhum parente ou mesmo foi casado. Todos os cenários, fantasias e personagens que aparentemente ele queria se livrar eram apenas parte dele mesmo, como caixas que saem uma de dentro da outra.

26 de janeiro de 2010

Domingo se vai


Eu caí de você.

Mentira. Eu não caí.

Você me jogou.

Lembro exatamente do dia em que ouvi o eco da minha própria voz desesperada, gritando no vazio dos seus olhos.

Escorri como a lágrima que você nunca chorou.

Todos sabiam que beber dessa água salgada era mortal.

Todos sabiam, menos eu.

Mas tinha certeza que seria em vão a tentativa de me equilibrar em um nariz que sempre aponta pro alto.

Cheguei na sua boca para tentar me despedir.

Mentira.

Eu queria reconciliação em lábios macios, mas eles acharam que o melhor seria cuspir quando deveriam beijar.

Me acertou.

A língua foi um trampolim.

O desejo era cair dentro do seu umbigo para entender essa sua individualidade, mas me espatifei nesse seu abdômen narcisamente perfeito.

Eu fiz de tudo para ser seu reflexo e enguli litros de mágoas, enquanto você fazia sexo sem olhar pra mim.

Tentei te segurar no meu sexo.

Tentei me segurar no seu sexo, mas suas mãos dispensaram minha boca com um movimento de que fariam tudo sozinhas.

Eu queria te chupar pra dentro de mim sem saber o quanto era grande.

Foi então que eu caí de você.

Mentira, já disse. Você me jogou.

Minhas últimas palavras foram sangrando aos seus pés.

Pés que desviaram de mim sem ter pena. Sem olhar pra baixo.

Engano pensar que o mais seguro seria ficar dentro de você.

Nunca fui atirada de um lugar tão alto.

17 de janeiro de 2010

Os quarenta mais eu


Um dia você recebe pelo correio a comunicação de que foi escolhido como um dos Quarenta. Só isso. Você é um dos Quarenta. Não há outras informações. Quarenta o quê? A comunicação não diz.

Você não liga. Deve ser propaganda. Depois certamente chegará um prospecto com ofertas para você, que é um homem de gosto apurado, um homem que, afinal, pertence ao exclusivo grupo dos Quarenta etc. Talvez seja uma coleção de livros ou uma linha de artigos de toalete, a preços especiais para 40 privilegiados como você.

Mas não. Durante muito tempo você não recebe mais nada. Até esquece do assunto. E um dia recebe pelo correio um cartão bem impresso, em relevo, com seu nome seguido da frase “Um dos Quarenta” e num canto o número 26.

Como o primeiro envelope, este não tem nem o nome nem o endereço do remetente. Aí você se dá conta de que também não há carimbo do correio. O envelope foi entregue diretamente na sua porta.

Você fica intrigado. Pergunta a amigos se eles sabem alguma coisa sobre os Quarenta.

- Quarenta o quê?

Você não sabe. Só sabe que é um deles. Ninguém jamais ouviu falar nos Quarenta. Ninguém das suas relações recebeu nada parecido. Você começa a fazer fantasias. Pertence a uma elite, mesmo que não saiba qual. As 40 pessoas mais… o quê? Não importa. Você é um dos 40 mais alguma coisa do Brasil. Ou será do mundo? Há algo que o distingue do resto da humanidade. Por quê, você não sabe. Quem o escolheu? Também não sabe. Mas não deixa de ser uma sensação boa se sentir um dos Quarenta. Nem todo mundo pode ser um dos Quarenta. Só 40.

Você começa a usar seu cartão dos Quarenta na carteira. Quem sabe? Um dia ele pode servir para alguma coisa.

- Você sabe com quem está falando? Sou um dos Quarenta.

Passam-se meses e chega outra informação. Haverá uma reunião dos Quarenta! Você deve aguardar informações sobre local, data, transporte, acomodações…

Sua curiosidade aumenta. Você finalmente vai conhecer a misteriosa irmandade à qual pertence. Quem serão os outros 39?

Mas as informações não chegam. Chega, um dia, um telegrama. Também sem nome ou endereço de remetente. O telegrama diz:

“NÃO VAH REUNIÃO QUARENTA PT EH ARMADILHA”.

É brincadeira. Agora você sabe que é brincadeira. Mas que brincadeira boba e cara, com telegramas, cartões em relevo…

No dia seguinte, toca o telefone. É noite, você está sozinho em casa, e toca o telefone. Você atende.

É uma voz engasgada. A voz de um homem agonizante.

- Fuja… – diz a voz, com muito esforço.
- O quê?
- Fuja! Eles estão nos eliminando, um a um…
- Que-quem são eles?
- Não interessa. Fuja enquanto é tempo!
- Mas eu…
- Não perca tempo! Eles me pegaram. Estou liquidado.
- Quem é você?
- O número 25…

Há um silêncio. Depois você ouve pelo fone o ruído borbulhante que faz o sangue quando sobe pela garganta de alguém. Você precisa saber uma coisa.

Você grita:
- Quem somos nós?

Mas agora o silêncio do outro lado é completo.
E então você vê que estão tentando forçar a sua porta.


*


A porta estava sendo forçada de uma forma estranha. Um matador em série não seria tão estúpido a ponto de fazer tanto barulho com uma maçaneta. Seria sutil. Um homem sutil com um clip de papel que entraria perfeitamente na fechadura e clic. Afinal, morrer pode ser ruim, mas o pior é ser morto por um amador. Tá pensando que está matando quem? Eu sou um dos 40. Um dos 40 que vão para um lugar lá em cima. Um lugar especial. Será? Será que ser um dos 40 também se extende para o céu e outras dimensões? Existe aquele ditado bobo que nada se leva dessa vida, mas eu vou deixar a cateira no bolso só por precaução. Chegando lá eu apresento e tento me identificar como alguém que foi escolhido através de um importante processo de seleção.

Será que ele está fazendo seu trabalho em ordem uma ordem específica ou mata conforme esbarra com a pessoa? Sim, porque as possibilidades são inúmeras. Ele poderia começar pelos pares ou, sei lá, pelos números primos. Dois é primo? Acho que sim, mas é sempre difícil tentar fazer conta quando tem alguém querendo arrombar sua porta. E não estou falando aí do medo de morrer não. É esse barulho repetitivo irritante que acaba tirando a concentração.

Quantos já teriam morrido? Será que eu vou ter que ligar para o próximo da lista também? Será que ele vai entrar com um daqueles globos da lotérica para que eu sorteie o próximo a empacotar?

“Olá, estamos aqui para mais um sorteio e chamo aqui o Eduardo, um dos convidados da platéia para que ele nos ajude. Vamos lá… está saindo o número… opa! Já temos a próxima vítima, vamos passar agora para nosso auditor… e está ok! O próximo a morrer é o número 32! Parabéns. Aguarde que o próprio Eduardo vai ligar pra você dentro de instantes e, quando menos você esperar, a morte estará batendo na sua porta!”

Sinceramente, eu estou achando que esse clube tem muitas perguntas e poucas respostas. É um absurdo. Somos os escolhidos e deveríamos ter o mínimo de informação. Os mortos ou quase-mortos merecem respeito. E essa demora para abrir a porta e acabar logo com isso? Até os condenados à pena de morte sofrem menos. O sujeito demora tanto que, ao abrir a porta, já estarei estatelado no chão. Causa mortis: úlcera.

Bom, chega. Vou lá facilitar as coisas. Abro a porta, me apresento e pergunto logo pra quem eu tenho que ligar. Estou preparado para o meu fim.

- Sim. Eu sou o número 26. Acabe logo com isso, seu assassino inescrupu… inescrupulosa? Você é uma mulher? Nunca pensei que seria uma mulher…
- Oi. Esse não é o 42?
- Não. Sou o 26 e, para sua informação, os escolhidos vão somente até o número 40.
- 26? Mas aqui na porta diz que é o… ai, desculpa! Pensei que fosse o meu apartamento! Já tava há horas tentando encaixar essa madilta chave na porta.
- Você é minha vizinha?
- Sim, mas foi sem querer que…
- Ok. Esquece.
- Desculpe mesmo. Eu…
- O que é isso embaixo do seu pé?
- Ah, ai… eu ainda tô aqui pisoteando sua correspondência…
- Você pode tirar o pé de cima?
- Ah, claro. Olha, você não faz ideia da vergonha que eu tô de…
- Ok. Boa tarde.

Mais uma carta. Mais um papel com letras douradas.

“Após revisarmos alguns critérios em nossos processos de seleção, informamos que o Senhor está fora do clube por questões de incompatibilidade de perfil. Esperamos que não se sinta lesado de forma alguma e entraremos novamente em contato quando novas vagas forem abertas.”

Mas o que eu fiz? Porquê? Nem se importam em dizer se eu fiquei classificado em quadragésimo primeiro ou ducentésimo quinto. Quer saber? Eu não preciso de nenhum clubinho killer segregacionista pra me matar. Deixa que essa minha própria vida se encarrega disso.


* até este ponto, o texto é do Veríssimo.

2 de janeiro de 2010

Flores ou Velas


O corpo estava fechado naquela caixa de madeira e tudo em volta tinha um cheiro de cera derretida e flores brancas. Naquele concurso de quem fazia o rosto mais infeliz, seu olhar estava pensando nas compras do supermercado. Um semblante tão vazio quanto a prateleira de produtos de limpeza. Indiferença que se escondia atrás de óculos escuros.

Minha cabeça baixa não era por tristeza e sim porque eu estava olhando para suas pernas. Poderia ter aproveitado a presença do padre para confessar mais esse pecado e erguer um brinde ao defunto antes de virar o vinho do cálice, garantindo de vez que a hostess do inferno me chamaria pelo nome ao aparecer por lá. Queria poder sorrir, beber e conversar sobre as coisas boas dessa vida, mas em alguma parede daquela capela tinha um cartaz dizendo ser proíbido. Aquelas foram as regras tolas que seguimos durante toda manhã, mesmo sabendo que nenhum de nós tinha o menor sentimento por aquele filho-da-puta.

No dia seguinte, mandei um buquê para sua casa acompanhado de um bilhete: “Eram pra ele, mas aprendi que flores cortadas não podem ser enterradas de volta”. No meio da noite, você ligou para agradecer. Disse que havia retirado as pétalas e preparado um banho com velas acesas em volta para sentir o mesmo cheiro do cemitério. Pensei em suas pernas, dentro da banheira, saindo e voltando para a água morna apenas para sentir a diferença de temperatura entre a realidade e o seu mundo. Perguntei porque eu estava ouvindo aquele eco. Você explicou que o celular estava no viva-voz para deixar as mãos livres enquanto ouvia a minha voz.

Aceitei com uma certa facilidade o convite interativo na sua brincadeira particular. Fui até a janela em busca de uma inspiração vouyer e assim comecei a dizer tudo que estava louco para fazer com você em um ritmo lento, calmo e rouco. Minhas palavras se misturaram ao som do seu corpo mexendo na água e à uma respiração que foi se tornando cada vez mais forte. Seus gemidos estreitos denunciavam que os olhos estavam fechados, enquanto a cabeça acompanhava os movimentos circulares dos dedos.

Seu ritmo era constante e alternado, ora mais forte, ora mais lento, como algo composto por Vivaldi. Com um pouco mais de concentração, você chegou no ponto e momento certos. Foi nesse instante que a respiração transbordou, as pálpebras oscilaram com força e o peito deixou o ar escapar através de uma boca entreaberta. Um gemido final fez seu rosto se esfregar na borda húmida da banheira. Eu fiquei mudo por alguns segundos até o silêncio ser quebrado pelo som de um isqueiro. Nossa conversa durou o tempo exato de um cigarro.

No dia seguinte, combinamos de nos encontrar no alto da torre. Ventava muito e seu cabelo chicoteava o rosto, denunciando uma ansiedade que o restante do seu corpo tentava esconder. Seus braços estavam arrepiados como aqueles que saem de uma banheira já procurando pela toalha.

As poucas palavras que saiam da boca se agarravam ao momento, mas logo eram arrastadas pelo vento como um papel que fugiu da mão por timidez. Uma timidez se transformou em um beijo no rosto e me dei conta que aquela foi a primeira vez que a gente se cumprimentou. O tato foi nosso último muro e ele caiu para dar lugar a um abraço longo. Foi quando senti essa cicatriz que faz um caminho enorme nas suas costas. Eu gosto dela, você sabe. Gosto apesar de nunca ter me contado até hoje o que realmente aconteceu. Ao invés disso, sempre transforma a dor em poesia, repetindo que alguém havia tentado tirar seu coração da pior maneira possível.

O abraço terminou dando início a um sorriso que disse precisar de mim da forma mais maliciosa que eu poderia imaginar. O sorriso veio acompanhado de um envelope que foi retirado da bolsa e entregue em mãos. Era algo já lido, mexido, amarrotado. Enquanto eu fazia uma cara de quem não tinha a menor ideia do que aquilo se tratava, seus olhos estavam aguardando a minha reação. Ali dentro havia uma única folha de papel. Era um documento, um testamento. Aquele maldito tinha deixado tudo para você, mas com uma condição: você teria que acabar com a minha vida.

O papel voou das minhas mãos ficando apenas a dúvida se a fragrância do momento seguinte seria de flores ou velas.

16 de novembro de 2008

Fechados


Não olhou. Deu um passo, outro, até desaparecer da vida dela. Talvez ele tivesse pedido a si mesmo que ela chamasse por seu nome, mas nunca irão saber. O que apenas sabe é que não se deve acreditar em um órgão que nunca viu mesmo quando insiste em bater forte no peito.

Olhou para frente militarmente: vidrado e com uma determinação cega no lugar do que seria um sentimento. Não via os carros que passavam sem limites nem a calçada do outro lado por ter a certeza de que não chegaria até lá.

Chega.
Feche os olhos e faça o que deve ser feito.

Deu um passo, outro, e pediu a si mesmo que alguém lhe chamasse. Ela, talvez. Se isto aconteceu, ele nunca iria escutar. As buzinas gritavam alto demais enquanto desviavam do seu corpo, soprando a música de ventos mortais.

Mais um passo, xingamentos e seus olhos cerrados. Quantos mais teria que andar até alcançar o fim? Curiosos pararam para assistir. Os demais, assim como ele, preferiram não ver o que certamente estava para acontecer.

Os próximos passos foram semelhantes aos de um homem sentenciado à morte. Trêmulos, lentos, suados. Mais um, dois, três e - ao invés da morte - ouviu aplausos.

Ao abrir os olhos, percebeu que estava do outro lado da calçada. Como? Olhou para trás e viu o nervosismo de um trânsito sem fim, sem sinal, sem paradas. Como? As pessoas o aplaudiam como em um número de circo.

Chegou em casa pensativo e teve que encarar um derrotado no espelho do banheiro. Não tinha a menor vontade de comer, dormir, tomar banho ou os demais clichês diários. Pegou a lâmina de barbear e fechou os olhos.

A lâmina afiada cruzava seu rosto. Merecia ser punido. As pessoas passariam a olhar sua cara navalhada com repugnância e aversão. Sim. Não. Nada aconteceu. Abriu os olhos e notou que nunca tinha feito a barba tão bem. Não havia nem um corte ou sangue.

Não conseguia acreditar no que estava acontecendo. Precisava se matar ou contar a alguém. Entrou no carro com os dois objetivos na cabeça. Deu a partida, fechou os olhos e engatou a primeira.

Foram mais de 6 quilômetros sem abrir os olhos. Fizera todas as curvas com perfeição e freou apenas ao chegar na casa do melhor amigo. Estava vivo.

- Tenho tentando me matar.
- Percebo e posso dizer que ainda não alcançou o feito.
- Escuta, porra. É sério. Fecho os olhos, tento me matar, mas nada acontece.
- E porque fecha os olhos?
- Gosto muito de mim. Não gostaria de me ver morrer.
- E veio aqui pra tentar me provar essa loucura?
- Tinha que dividir isso com alguém.
- Ótimo. E se você estiver errado eu vou ver o meu melhor amigo se matando na minha frente. Obrigado, acabei de jantar.

Ele deixou a casa do amigo. Ao invés de dar provas, recebeu o cartão de um psiquiatra.

Dias depois, lá ele estava no alto de um prédio. Ao olhar para baixo, viu apenas carros que corriam bem pequenos. Encheu os pulmões de ar e suspirou com a força de quem gostaria de retirar a alma de dentro do seu corpo. Bombeiros, polícia, multidão e a mídia faziam cada qual seu papel. Olhou para frente e viu a corda que ligava um prédio ao outro. Fechou os olhos e simplesmente andou.

Alguns passos depois e ele já estava dentro de estúdios, dando entrevistas para os principais canais do país. Passou a fazer números em turnês por todos os continentes e recebeu aplausos em diversas línguas. Foi em uma dessas apresentações que seus olhos encontraram outros que deram uma leve piscada.

Na mesma noite, marcaram de se encontrar no ponto mais alto da ponte. Ela estava linda e seus olhos a acompanharam até chegar bem na frente. Só restava um passo. Fechou os olhos e a beijou.

Na opinião dela, aquele havia sido o pior beijo da sua vida. Não saberia explicar. Preferiu abrir os olhos e colocar a mão espalmada no peito dele. Nada disse. Deu um passo, outro, até desaparecer da vida do homem.

Sem esperanças de que ela chamasse seu nome, se jogou da ponte de olhos abertos.

23 de julho de 2008

_ _ _ _ _


Tinha o hobby de escrever sobre linhas extremamente perigosas. Dissertava longos poemas por trilhos que apitavam com insistência de quem não queria ferir, mas infelizmente não poderia parar. Suas sílabas nem ao menos gaguejavam. Permaneciam imóveis como se estivessem amarradas com cordas fortes, porém eloquentes como se não existissem panos em suas bocas.

Eloquencia sem tremer nem trema. A extensa pauta de seus cadernos era um imenso precipício, um abismo de onde empurrava suas vogais com violência. Era preciso. Elas haviam de aprender a se multiplicarem a partir do eco.

Ao término de cada linha, amarrava anzóis pontiagudos e sadomasoquistas que possuíam a maldade de pescar as hifenizações. O complemento da palavra olhava para a linha de cima com dor, mas seguia forte mesmo tendo que ser lido de forma abrupta. Seus leitores empenhavam-se em suportar a tinta vermelha que pingava sobre o papel branco, transformando em acentos graves o que antes era craseado com uma certa dúvida.

Usava os vocábulos que bem entendia. Não se importava em cansar palavras por conta de seus vícios de linguagem e gírias superficiais. Enquanto algumas eram soletradas diariamente, outras caíam vertiginosamente em desuso. Seu destino era o calabouço das páginas esquecidas do dicionário. A palavra nunca fugia do seu raciocínio e cumpria sua pena até o dia em que o autor picotava as linhas, escrevia algumas letras em espaços pontilhados e condenava vosmicê à forca.

11 de julho de 2008

Paladares


Quando a língua saiu, ela sabia exatamente o que ia fazer. Contou apenas até 1 e atirou-se em direção à outra casa com a intimidade de quem já tinha estado ali inúmeras vezes. Havia estudado aquele ambiente meticulosamente durante anos em simulações de guerrilha no gelo e conseguiria encontrar seu ponto de contato de olhos fechados. A senha foi traduzida em forma de um beijo demorado. Aquele seria o posto de informações para tudo que viria acontecer a partir dali. Seus riscos e acertos dependiam de forma crucial daquele primeiro encontro.

O beijo tornou-se despedida ao menos momentaneamente. Deixou o recinto sem nada dizer e partiu ao encontro da pele, deslizando até sentir o gosto francês da fragrância localizada de forma premeditada. Havia conseguido as pistas até aquele lugar através de feromônios muito bem informados.

Sua presença era sempre uma grande surpresa. Os pêlos levantaram-se todos ao mesmo tempo, mas não ousaram correr. O exército, como um todo, ficou à mercê de um ataque que não exitou em passar simplesmente por cima.

Após alguns momentos de tortura, a íris contou o que língua nenhuma diria de forma tão fácil. Ela estava a poucos centímetros do que seria seu objetivo final ou início de tudo. E sabia, acima de qualquer coisa, que teria que agir com absoluta precisão.

13 de junho de 2008

Dois Corações


“Estamos aqui, na Maternidade Santa Maricota, lugar onde acaba de nascer o primeiro bebê com dois corações do mundo. Olá, tudo bem? Aqui ao meu lado temos o médico que…”

Ele nasceu filho da notícia. Em um mundo onde é cada vez mais normal ter gente sem coração, aparece logo um moleque com dois. Sensacional. Nem preciso dizer que tava todo mundo amontoado na frente do hospital. Volume parecido de gente nunca tinha acontecido igual. Nem mesmo quando o circo chegou trazendo mulher barbada e elefante anão. Foi um alvoroço naquele lugar esquecido por Deus. Uma cidade tão esquecida que ninguém mais lembrava o nome e acabaram rebatizando-a de Dois Corações.

“… mas, doutor, o que é melhor fazer agora? Corre risco de vida? Ele fica ou não com os corações?”

O sim prevaleceu e lá foi Severino ser escolhido para viver uma vida toda com ventrículos e átrios em dobro. Nos tempos de escola, perfilava junto aos demais alunos para o hino nacional. Apesar de nunca ter decorado a segunda parte da letra e alguns pedaços retumbantes, era o único que não corria o risco de errar a mão em relação ao lado certo do peito.

Toda essa fama fazia com que a íris das meninas refletissem pequenos corações que iam flutuando até estourarem em um desesprezo qualquer.

Ele não tinha o mínimo interesse no amor e não adianta ficar assuntando no ouvido. Não que o sucesso havia subido à cabeça, nada disso. A vontade de ter uma namorada ou um relacionamento em categoria aspirante não era merecedor de muita atenção e pronto.

Severino era dado a outros prazeres. Entre os preferidos, comer até se empanturrar. Encher o bucho pra valer - que, por sinal - era um só. Nada de alimentação com ômega 3 enriquecido com 8 mineirais e cálcio. Sua especialidade era gordura equilibrada com frituras da pior qualidade. Aí já sabe: um dia Severino teve um treco comendo uma coxinha no boteco.

E lá se foi o tumulto pro hospital novamente. O pessoal do folhetim já tava lá de prontidão, quando o médico saiu.

“Severino passa bem. Fizemos a cirurgia de modo que…”

O danado teve foi sorte. Enquanto um coração tava entupido, o outro continuou fazendo seu trabalho, livrando Severino da morte certa. No dia seguinte, o cabra saiu andando do hospital mas não tinha mais uma alma viva lá fora. Afinal, que graça tem um homem com um coração só?

Em meio à uma cidade que pulsava invonluntariamente, sentiu, pela primeira vez, um vazio no peito. Olhou para os lados, escolheu um caminho e seguiu em busca de um outro coração para bater bem perto do dele.

18 de maio de 2008

êcoV


Esses pedaços de vidro que ganham o nobre dom de refletir possuem a crueldade de simplesmente mostrar sem nada dizer, apontando defeitos da forma mais blasé possível.

- Quem é você? Hein? Apesar de ter moldura, está longe de ser uma obra de arte – e respondeu da mesma forma telepática, sem balbuciar uma vogal.

Seu desejo era quebrar o espelho, mas pensou em todos os anos de azar que viria somar-se aos que já haviam sob seus ombros.

- Eu já ando bem pesada com meus ganhos materiais.

Os seres humanos crescem como árvores: ao longo dos anos, a idade passa a ser proporcional ao diâmetro do tronco. Ela queria ser uma roseira e casar com o cravo. Colocaria seu vestido amarelo para o civil, o branco para a igreja e uma lingerie vermelha colombiana para as núpcias.

- Será que não existe mais homem sensível nesse mundo? Será que o último inventado foi Chico Buarque? Será? A merda do Chico é que ele entende tudo de mim, mas poderia me ouvir ao invés de só cantar.

O peso é excludente.

- Desculpe, senhorita, mas aqui você não entra. Tente outro jeans.
- Como não? Esse jeans é meu. Entrei aí durante décadas.
- Entendo, senhorita. Você pode tentar entrar sem problemas, mas o convite não é extensivo a acompanhantes. Essas gordurinhas vão ter que ficar do lado de fora.

Ela não se surpreendia mais com esse tipo de tratamento. Achava até uma coisa normal. No começo, eram apenas elogios. Sorriam um para o outro, entre giros de lá pra cá.

- Sinceramente? Se espelho fosse um objeto sensível, não seria masculino. Seu merda.

Colocou um vestido preto com a ilusão de que emagrece. Abriu a caixa redonda e retirou um chapéu pontudo. Pegou uma cesta, encheu de maçãs e saiu. Os mais belos reflexos estão com os dias contados.




Esta foto linda é da talentosa Anna Luiza Fischer.
Dêem uma olhada em todas aqui.

28 de abril de 2008

Pêndulo


Olhou pro alto e viu seus pés.

Não havia o que fazer naquele mundo invertido a não ser esperar. Poderia fumar um cigarro até alguém chegar, talvez. Ou quem sabe pegar o celular. Nos dias de hoje, as pessoas que não fumam pegam o celular quando estão esperando. Olham para ver se alguém ligou, se existe alguma mensagem ou simplesmente para saber a hora.

Sim, fazia horas que ele estava pendurado. Se fumasse, já teria facilmente queimado a corda. Se tivesse um celular naquele momento, já teria ligado e pedido ajuda. Se tivesse os dois, já teria feito uma messagem de fumaça McGyver, unindo o fogo do isqueiro ao aparelho. Várias soluções teóricas e nenhuma prática em sua mente inchada pelo sangue que corria pra cabeça.

Olhou pro alto e viu o galho da árvore.

Nunca havia torcido tanto para uma árvore cair. Se tivesse comido mais carne e fritura ao invés de salada, pesaria mais e aumentaria as chances dela cair. Era chegada a hora da vingança da árvore por todas as folhas que comeu na sua vida. Desista. É mais fácil esse galho aprender a brincar de iôiô com você.

Aquilo seria seu fim. Sentia a angústia e a solidão de uma espera por nada. Não podia nem sequer se concentrar para o que filme da sua vida passasse em sua cabeça febril. Um grito? Ninguém pode ouvir você e não existe nada que…

- Carrrrrrlinhhooooooosssss!
- Que é mãe!
- Pára de brincar com esse balanço e vem logo comer.
- É salada?

6 de dezembro de 2007

Deus e Demo


Deus e Demo são irmãos. Assim como diversas mães no mundo, a deles também adorou a idéia de dar nomes aos filhos começando pela mesma letra. Assim como diversos irmãos no mundo, Deus e Demo também brigam por qualquer motivo e, caso não haja nenhum embaixo da cama, eles inventam.

Por falar em cama, aí está mais um motivo ótimo para brigas:
quem dorme em cima da beliche.

Desde que a beliche chegou, a luta pelo domínio do espaço e dos bilhões de ácaros que ali residem teve início. O objetivo é ser maior, estar em um lugar sobre tudo e todos, na cama de cima.

- Par ou Ímpar.

Deus escolheu “par” pensando em Adão e Eva, seus bonecos preferidos.
Demo ficou com “ímpar” por dois motivos:
1) Ele preferia a solidão, além de um desejo explícito de ser filho único;
2) Foi a opção que sobrou.

- Ganhei! – e o Demo foi para cima, gargalhando o mais alto que deveria.

A idéia de ter uma beliche havia sido uma criação Deus, mas teve que se contentar com sua terrível sorte. Pegou Adão e Eva e foi deitar-se no primeiro andar com aquela cara de quem foi expulso do paraíso.

Enquanto Deus dormia em nuvens e lençóis de algodão, Demo tinha um sono perturbador. Dormia sem edredom porque sentia seu corpo em chamas. Suava. Roncava. Rolava de um lado pro outro até que caiu da cama e quebrou a perna.

Na noite seguinte, Demo perdeu seu posto pelo simples fato de que não conseguiria subir as escadas por um bom tempo. Em respeito à dor do irmão, Deus não fez piadas. Seguiu rumo às alturas, orando pelo enfermo.

Deus gosta de dormir com a luz ligada, o que é mais um ótimo motivo para brigas. Justamente por isso ou não, Demo fica espetando Deus com um garfo durante a noite e contando quantos amiguinhos haviam vendido suas almas através das assinaturas no gesso do seu pé.

- Demo?
- Sim.
- Durma com os anjos.
- Vá pro inferno.



Mais uma grande foto de Leogetz: www.flickr.com/photos/leogetz

21 de novembro de 2007

Nique-pique


Parou com a grande cesta no meio do pântano. Tirou um pano branco com listras pretas e pregou suas pontas no único pedaço de grama seca. Em seguida, saíram uma fatia de ansiedade e uma metade de luxúria. Lembrou-se também que havia trazido formigas. Sacudiu o vidro e espalhou todas, na tentativa de desordenar a vida de alguém. Por fim, a torradeira. A cada 30 segundos, torradas em dupla eram catapultadas para o horizonte relampejante, mas eram abatidas por seu arpão antes de conseguirem voar para o norte.

- Boa pontaria, garoto – disse a cabeça empalhada de búfalo, sua amiga e comentarista.

Com a libido saciada, não notou que a luxúria estava sendo devorada pelas formigas.
Em fila indiana.


Gostou da foto?
É do Leogetz: www.flickr.com/photos/leogetz

19 de setembro de 2007

Poderes


- Olha só o que eu sei fazer.
- Faz aí.
- Hahahahaha.

A maior parte das pessoas descobre seus super poderes enquanto criança. O vizinho da rua de cima, por exemplo, conseguia virar as pálpebras. Carla colocava a língua no cotovelo. Ruivo era capaz de virar uma garrafa inteira de refrigerante em segundos, de um gole só. De quebra, ele dava o maior arroto do Bairro, fato que o classificava com duas menções honrosas.

E eu?

Eu era um covarde. Minhas maiores ousadias em ordem de importância foram: subir no banco e pegar biscoito em cima do armário. Tudo bem, você vai dizer que foi apenas uma ação, mas o evento é composto pelo perigo da altura em relação ao solo e a presença cruel e perversa da minha tia-avó. Ela era dona de uma casa minada, com feixes de raio laser por todos os lados. Um passo em falso e bibelôs bélicos poderiam me transformar em um saci. Assim, ganharia o poder de andar num pé só.

Em lugares desse tipo, menino e bola não dividem o mesmo espaço.

- Nunca! Só da porta pra fora. Do escudo invisível pra lá e não tem mais conversa.
- Ok. Tá bom.

Um dia, meu padrinho apareceu com um presente. De dentro da caixa quadrada saiu algo geometricamente oposto. O reflexo da bola encaixava perfeitamente na minha íris brilhante.

Foi tudo automático. A bola foi ao chão, o pé foi à bola e a bola foi até a tragédia em forma de estilhaço. O som ricocheteou em vidros e porcelanas, atingiu os tímpanos da velha, ressonou no cerebelo e acionou o braço em direção ao tamanco.

E lá veio o tamanco em uma velocidade maior que minhas pernas trêmulas. Não tinha como escapar. No reflexo, encolhi a cabeça com força e criou-se a escuridão. Ouvia os gritos da velha abafados e misturados com o som acelerado do meu coração e o inflar e desinflar ofegante dos meus pulmões. Segundos depois e com um pouco de coragem, tirei a cabeça para fora do corpo e ganhei a rua.

Semanas depois, toda vizinhança conhecia o poder do garoto tartaruga e seu drible futebolístico com a bola no lugar da cabeça.

20 de agosto de 2007

Dedão


Sara era uma menina recém banguela. Seus dois dentes-de-leite da frente haviam caído simultaneamente com sua popularidade junto aos meninos, permanecendo em alta os carrinhos e videogames. Mas isso só seria um problema quando aprendesse fora da escola o que era paixão e amor. Enquanto isso, ela mostrava o lado positivo da vida, fechando a mão com o dedão para o alto e colocando-o na boca com a finalidade de ocupar os lugares vazios.

- Tira esse dedo da boca, Sara!

Ela fingia que não escutava, como se o tal dedão tivesse no ouvido e não na boca. E lá vinha a segunda advertência seguida de um pequeno tabefe.

- Tira esse dedo, Sara. Que feio.

Sua mãe abaixou, segurou em seus ombros e complementou dizendo que não queria perdê-la. Sara não entendeu. Fez que sim com a cabeça, mas cruzou os dois dedos que vêm logo após o dedão atrás das costas.

Na noite seguinte, todos dormiam. Sara já era uma mocinha e tinha sua própria cama. Deitada, ouvia apenas o silêncio de coisas que não costumam se mexer de manhã, mas não viu ninguém entre o dedão e sua boca.

Chupar o dedo deu a ela uma sensação boa, mas resolveu fazer diferente: assoprou. Estranhou ao olhar seus braços um pouco mais roliços que o normal, mas inspirou forte novamente e assoprou mais uma vez, bem demorado. Seus pés incharam junto com suas canelas, ficando mais leves.

Sara continuou e foi se transformando rapidamente em um balão. Já flutuava pelo quarto, brincando de pegar impulso nas paredes, quando saiu pela janela. Ao passar pelo quarto de sua mãe, quis mandar um beijo mas seu braço não alcançava mais a boca.

Subiu. Alto, bem alto. Passou por prédios, montanhas e flutuou em direção à lua. Não demorou muito para Sara se sentir sozinha no meio daquele escuro. Afinal, as estrelas não iluminavam tanto quanto seu abajur de ursinhos, aceso durante toda noite. Começou a chorar, alternando lágrimas com chamados por sua mãe. Mas ela não ouviu. Deveria estar bem longe, ou com o dedão no ouvido.

Foi quando Sara cansou de chorar, dando lugar a um imenso suspiro. Notou que seus tornozelos diminuíram e suspirou novamente. Lentamente, seu corpo foi descendo e já conseguia ver o lago lá embaixo. Mais suspiros, menos altura e finalmente voltou ao seu quarto. Seu nariz ainda estava um pouco mais arrebitado que o normal, mas preferiu deixar como estava. Quem sabe assim, sua popularidade subiria uns 4,2 pontos.

11 de agosto de 2007

Um dia Perfeito


Vê como são as coisas. O Gasta recebeu uma corrente para escrever sobre o tema “Um Dia Perfeito”. Eu conheço o sujeito e sei que ele detesta essas mensagens de quebra-cabeça-com-canção-da-Bela
-e-a-Fera-em-forma-de-Power-Point, mas dessa ele gostou. Acabou escrevendo um mini conto com um final pra lá de feliz. Sabe aquelas histórias de casal que começam bem, acontece um desastre atrás do outro e no final dá tudo certo? Pois ele escreveu apenas o final. Tá certo. Perfeito é esquecer tudo e ir direto pro que é bom. Como toda corrente, ele tinha passar para alguém e os sorteados foram eu e a sensacional Ana Tejo. Com o bastão na mão, fiquei sabendo de outra coisa bem boa: a corrente foi criada pela Fabi, uma amiga querida e de um humor ácido sulfúrico. Mundo pequeno? Não. O mundo é perfeito.

Tá. Vou parar de enrolar. Aqui vai “Um dia perfeito” em um estilo debochado, coisa de samba de mesa cantarolado com um sorriso de canto de boca, meio Zeca Pagdinho, meio Dicró. Abraços!




FUGA

Já fugi de tudo quanto é lugar
Do Carandiru junto com o Beira-mar
Me mandei do Bangu um, dois e três
Bem mais de uma vez

Corri de Pastor Alemão lá no Piranhão,
Escapei na rebelião lá do Conceição.
E até pulei o muro de Alcatraz
Ô rapaz...

Tô acostumado com isso,
As regras dos homi eu desconheço
Educação nunca tive,
Quando bebê serrava até berço

E na fuga eu volto pro morro,
E na chegada foguetório é geral.
No seu sorriso um lindo bem-vindo,
E a vida parece que volta ao normal.

Mas sempre que fujo não tem erro
Eles sabem bem onde me encontrar,
Se for procurar vão sabê que tô lá,
Na sua prisão domiciliar

Porque tava escrito na minha sentença
Passar a minha vida toda preso em você
Pois o nosso amor é no esquema
Rola cafuné e massagens, menos algema

E hoje perdi as contas dos túneis que fiz
Só pra te encontrar
Pulei arame farpado que fez cicatriz
Só pra te abraçar

E porquê?
Porque é mais fácil fugir daqui do que do seu olhar.




Agora eu passo a bola pro .
Conhece? Não? Então vai lá pra ver do que esse cara é capaz.
Bora, Zezinho. Manda ver.

24 de junho de 2007

São seus


- O que você tá fazendo agachada?
- Procurando meus olhos. Quem é você?
- Sou eu, André.
- Ah! Que bom. Cuidado para não pisar e me ajuda aqui a encontrar.
- De que cor eles são mesmo?
- Nossa, dá pra perceber que você nunca reparou mesmo em mim.
- Não começa…
- São verdes, André. Verdes.
- Você já perdeu tanto esses olhos que nem liga mais, né?
- É. Já estou aprendendo até a desenvolver mais os outros sentidos. Você deveria experimentar. Quem sabe seria um pouco mais sensível.
- Nem fala isso. Me dá agonia só de pensar. Se tivesse no seu lugar, já estaria desesperado.
- Não adianta muito espernear. Você não sabe o quanto é difícil chorar sem os olhos.
- Da forma como diz, parece até queu nunca perdi nada.
- Sem essa, André. Você não é o tipo de cara que teve muitos problemas na vida. Muito pelo contrário: esses seus olhos aí foram presente de uma admiradora que eu sei.
- Você insiste nessa merda de história. Eu já não disse que ganhei de um amigo do trabalho?
- Tá achando que eu sou cega?
- Momentâneamente, sim.
- Escuta aqui, André: nenhum amigo homem dá um par de olhos azuis para o outro.
- Não eram azuis. Eram castanhos claros. Como eu já tinha olhos castanhos escuros, resolvi trocar pelos…
- Eu li o bilhete, André.
- Uh?
- “Este é um presente escolhido com muito carinho. Quem sabe assim você passa a olhar para mim com outros olhos”. A vagabunda nem conseguiu sair do clichê.
- Olha…
- Olha você. Você e seus lindos olhos azuis. Acha que eu não percebi que você mudou? Eu conheço todos os meus defeitos muito bem. Mas foi só você trocar seus olhos para as minhas celulites passarem a serem vistas com um neon piscando. Seu nível de exigência ficou inalcançável e…
- Achei.
- Onde, onde?
- Aqui. Me dá sua mão.
- Ufa, ai que bom… mas cadê os seus olhos?
- São os que estão com você. Pode ficar. Eu vou voltar a usar os meus olhos castanhos.
- André…
- Sim.
- Esse seu queixo sempre foi torto assim?

3 de junho de 2007

Identidade


Ele tinha um cachorro chamado Mentira. O pequeno vira-lata havia ganho a divertida alcunha pelo simples fato de ter as pernas curtas. Fiel e amigo como todo cachorro, adorava passear com seu focinho ao vento na janela de Will, seu veloz automóvel que hoje estava ainda mais rápido. Ele tinha pressa em chegar em sua casa na serra, carinhosamente nomeada de Pinha pela proximidade com uma grande floresta de pinheiros. Clara, sua criada há anos, já estava com tudo pronto à sua espera. Na verdade, seu nome era outro e este pseudônimo havia sido inventado por ele ainda criança. Quando pequena, renegara sua cor e vivia a maldizer seus pais. Um dia, fugiu de casa e foi encontrada na esquina por um casal. Naná e Cani eram ótimas pessoas e todos os conheciam por seus apelidos. Eles mesmos se chamavam assim e se diziam rebatizados pela linguagem limitada de seu bebê, o único filho. Para não se sentir só em meio aquela casa enorme, ele tinha o hábito de dar nomes a todos os seus brinquedos: o soldado verde era Ivo, o monstro com nadadeiras era Matilda e a bicleta era Kátia. Seu predileto era o urso Jasão, que dizia o amar quando apertava-lhe o nariz. No entanto, a sirene que ouvira agora, ao chegar na Pinha, era bem diferente de todos os seus brinquedos. Clara chorava ao lado de policiais armados e a ordem era para se entregar. Ele estava preso por falsificação ideológica.

30 de maio de 2007

Pra fora


– Olha, préstenção: eu vejo umas coisas.

Eu era bem garoto quando tomei meu primeiro porre. Foi sim. Era tão moleque que meu pai tinha uísque mais velho que eu. Foi por isso que resolvi ir para uma festa acompanhado por uma de suas garrafas de 18 anos. Ele não sabe disso até hoje e, depois do tanto que bebi nas horas seguintes, eu também não deveria lembrar.

Todo buxixo comemorativo sempre fica mais animado quando tem o dobro de gente e deve ser por isso que o pessoal enche a cara. Mas todos aqueles gêmeos torna dificílima a passagem sem encostar em ninguém. Passei pelo sofá, mesinha de centro, abajur, aparador – opa, prazer: bola de pimbal – mesa de jantar, cristaleira (bônus 500 pontos) e pela porta do banheiro.

– Privada, eu te considero pra cacete.

Abracei o vaso sanitário e fui com tudo. Posso continuar nos detalhes? Eu acho que pode ser importante para o entendimento. Posso? Ok. Havia cadáveres do bufê com umas coisas verdes em decomposição pelo suco gástrico, uns submarinos de salame e um cruzador de canapé completamente destroçado pelas enzimas digestivas. No meio daquela confusão, consegui reconhecer plenamente apenas uma bolinha de queijo. Ela estava intacta e aquilo simbolizava a minha maior vitória infanto-juvenil: engolir 32 daquelas no menor tempo possível. Até hoje penso que eu também deveria ser reconhecido por colocar tudo pra fora no menor tempo, mas ninguém presenciou nem cronometrou aquele feito.

Sim. Eu tava sozinho com a privada quando aconteceu o inesperado. Todas aquelas partículas gosmentas começaram a rodar em sentido de rotação e translação, uma via láctea que ia girando no ar, com a bolinha de queijo ocupando sua posição solar de destaque. Uma profusão de luzes, explosões de estrelas e um buraco negro se abriu entre o resto de risole e batata palha processada. Dali surgiu a imagem da Antônia com aquela saia torta que rodou a cintura e o fecho foi parar na lateral. Feia. Se juntasse todo pêlo que tinha espalhado pelo meu corpo, não dava o buço dela.

Eu tinha certeza que era a Antônia. Tava mais velha, mais feia e tinha acabado de ser mãe. Segurava um bebê e andava de um lado pro outro, cantarolando. Imagina o Renato Aragão, cantando, vestido de Maria Bethânia. Assustou? A mim sim.

Descolei da privada me atirando contra a parede de ladrilho e o universo foi descarga abaixo. Ainda fiquei ali durante alguns minutos quando alguém entrou com a idéia de me curar com café forte e banho. É incrível como depois de ter bebido um monte sempre vem um sujeito querendo colocar você em contato com mais dois líquidos.

O dia seguinte foi uma dor-de-cabeça infernal e meu pai perguntando pela sua garrafa de estimação. Nem adiantava colocar a foto do uísque em caixa de leite que jamais iria encontrar seu infeliz paradeiro. No entanto, eu achei as minhas respostas nas festas seguintes.

Bebi, bebi, bebi - mais uma dose – bebi e bebi muita cerveja por me considerar grande o suficiente para ir nas festas sem a companhia de outra garrafa do meu pai. Conversa vai, manguaça vem, não demorou muito para o encontro com o meu par. É bom achar alguém que você pode colocar tudo pra fora.

Lá veio o universo rodopiando novamente. A cor mudou um pouco, entraram mais alguns astros aqui, saíram outros cometas ali, mas abriu-se mais uma vez o mesmo terrível buraco negro. Tive medo e senti um líquido quente esvaindo por entre as minhas pernas. Quer saber? Que se dane queu já tô no lugar certo pra isso. Fiquei sem piscar, repetindo mantramente “Antônia-não-Antônia-não-Antônia-não…”

Era o Abel. Ele estava na casa dele, andando sozinho da sala para a cozinha. Chegou perto da pia. Olhou para o lado. Abriu o armário. Tirou uma caixa bem do fundo e dali saíram inúmeras revistas de pornografia & sacanagem, uma para cada espinha no rosto. Quê? Uh!? A mãe dele apareceu e… lá foi o universo pelo ralo.

Amanheceu e outra dor na mente. Mas já tinha visto isso na TV: quem tem um dom especial sempre fica meio debilitado depois de usar seus poderes paranormais. A confirmação de que eu via o futuro veio um mês depois, quando fui chamar o Abel para uma pelada e o coitado disse que estava de castigo em função de outras peladas.

Com o passar do tempo, fui aprendendo a lidar com este grande presente de Baco. Eu bebia, vomitava, previa, porém com alguns avanços surpreendentes. Uma das coisas foi que a data da previsão era sempre equivalente ao ano daquilo que eu tava bebendo. Por isso que o caso Abel aconteceu rápido, uma espécie de futuro do presente em relação a…

– A Antônia.
– Porra, tirou as palavras da minha boca. Como você sabe que eu…
– A Antônia no telefone. Pediu pra você parar de encher a cara e ir dormir.
– Ah! Não enche, Cristóvão. Se você tivesse engravidado essa mulher, também tava aqui bebendo. Anda, coloca isso no gancho e me serve mais desse Uísque paraguaio.

23 de maio de 2007

Satúrnica


Mulheres combinam com jóias. Desde que os homens deixaram de lado a profissão de pirata, acabaram afundando com suas poucas peças sem brilho. Mas mulheres continuaram belas, flutuando com seus baús e guardando muito bem os seus tesouros.

Era por isso que ela não conseguia achar. A primeira regra de se enterrar um tesouro, é fazer uma marca no chão. Pensando bem, não ia ficar bonito uma linha pontilhada começando na porta de entrada, percorrendo toda casa e indo terminar em um “x” no meio do quarto. Pra ser assim, melhor mesmo nem encontrar o… o que é mesmo que ela procura?

- Cadê!!? Nessa caixa? Não… merda.

Mulheres podem ser ótimas com tesouros, mas elas têm que assumir que são poucas as que entendem de mapas e, digamos, sentido de localização. Portanto, não adianta que você, leitor, torça para que ela encontre. Ela não vai. Nem depois desses pulinhos de promessa pra São Longuinho.

- Achei! Não…

A eterna procura de Ana teve seu início quando ainda cabia em uma arca. Estavam todos os amiguinhos brincando de passa-anel, lado a lado, com as mãos espalmadas e unidas. Enquanto isso, o dono provisório do anel foi passando de um em um, bem devagar, com as mãos na mesma posição eclesiástica, bem suavemente, escolhendo com os olhos quem seria o amigo digno de ser o próximo. O passar das mãos fazia cócegas e provocava um acerto arrepio bom, muito bom... e agora? Cadê o anel?

Estava com Ana. Ela conseguia sentir o frio do metal na palma da sua mão e era difícil ter que esconder o sorriso da vitória. Tinha que ter uma postura de jogador de poker 14 anos antes de saber o que isso significava. Porém, não assumiu jamais que o anel estivera com ela. Fugiu dali com o pequeno objeto escondido. Para os adultos que olhavam de fora, a brincadeira havia acabado sem vencedores. Puro engano.

Em um canto, escondida dos últimos olhares desistentes, Ana olhava seu prêmio. Um anel de plástico, desses que piscavam colorido antes da bateria acabar. Fechou os olhos. Começou a juntar saliva como fazia para tomar remédios sem precisar de água e pronto: engoliu.

Após a garganta denunciar o movimento do anel dentro do seu corpo, um leve sorriso se abriu antes mesmo dos seus olhos. Aquilo era seu complemento. Um objeto que não havia nem começo, nem fim. Exatamente como o seu nome.

A cada anel engolido, seu corpo passava por sensações quase indescritíveis. Em uma só noite, foram 5 de uma vez. Uma overdose. Ao dormir, suas alucinações a levaram até as primeiras olimpíadas de Atenas. Um pódio onde os anéis se transformavam no símbolo olímpico. Podia sentir os louros. Sabia do poder daquela pequena roda. Girava, movimentando um moinho, alimentando um vício que se tornou cada vez maior. Uma roda gigante.

Iniciou-se em pequenos saques. Entrava em lojas e fingia bocejar, levando anéis e mais anéis à boca. Sim, era ridículo. Amigos suspeitavam de cleptomania, mas não comentavam. Preferiam o clichê remasterizado de que vão-se os anéis, ficam-se os amigos.

Ana era a única mulher que não usava um único anel e sempre observava as mãos das rivais. Salivava nas festas de pompa.

- Mas o que você olha, Ana?
- Nada. Gosto do jeito como gesticula. Acho bonito.

Em uma dessas festas, conheceu seu noivo. Ela tinha acabado de sair do banheiro com um rosto de felicidade por ter encontrado um anel esquecido na pia por uma das convidadas. Nada mal. O sabão pode até piorar o sabor, mas escorrega que é uma beleza. Seu semblante e energia momentâneos foram suficientes para encantar o rapaz e hoje completam 5 anos de namoro. Por conta do número redondo, ele a chamou para um jantar especial. Sem problemas. Lindo. Mas cadê esse anel? Ela precisava matar aquela vontade antes que…

Din don!
Din don!

Não é possível. Só podia ser ele. Não, não. Pensou em dizer que estava passando mal. Não, não ia adiantar. Ele ia querer entrar. E agora?

Din don!

Olhou para o espelho, tirou do reflexo uma dose de controle e foi abrir a porta. Ele trazia flores e sentiu todo o nervosismo nos olhos dela. Será que ela desconfiava do que ele havia planejado? Provável. Afinal, foram anos e anos de relacionamento antes desse dia. Do grande dia. Sem também conseguir esconder suas mãos trêmulas no bolso, o rapaz tirou de lá uma pequena caixa, abriu e fez a pergunta que se faz a toda noiva.

- Sim, meu amor, era tudo que eu mais queria nessa vida – respondeu Ana com um beijo apaixonado.


Ilustração feita novamente pela designer Chloe Valente.
www.flickr.com/photos/e_valente/
(a gente pediu bis, né?)

17 de maio de 2007

Cama de gato


Isso era uma certeza bem certeira pra todo mundo que tinha pelo menos um olho funcionando na cara: Fabiana era bonita por demais. Negra de uns olhos verdes igual abacate maduro e um corpo feito arte de seringueiro na árvore. Tudo aquilo que se começava de cima, acaba em pernas de quem andava na ponta dos pés no meio da plantação de morango para não estragar a beleza e nem a promiscuidade que acompanhava a junção da fruta mais ela. E não pense que seu vestido não era diminuído pelas mãos para caminhar melhor não. Era por conta da mais pura luxúria de quem descobriu ser mulher faz pouco tempo e tava é gostando e muito disso. Pra quem era mal das vistas, mas tinha seu cheirador funcionando, ela também fazia gente empinar o nariz e ir fechando os olhos bem devagarzinho. Seu rastro era de banho tomado misturado com o perfume que a grama tinha ganhado de presente da chuva. Enquanto nóis criava tudo quanto é tipo de bicho, a dita cultivava suspiros. Era a número um no curral eleitoral da nossa zona da mata e havia uma fila enorme de pretendentes. Tudo trouxa. Fabiana passava com antolhos, mas teve um dia que ela se desviou pra Exclemêncio.

- Tu viu, Exclemêncio!? A Fabiana te quer, rapáze!
- Ah, é?
- É!
- Sei – e olhou pro lado que ninguém olhava.

Ê mania de mãe essa, que bota nome em filho antes de olhar pra cara do rebento. Exclemêncio sempre foi meio abestado e lembro da nossa professorinha que dizia: “Ô guri, presta atenção na aula. Fica aí, o tempo todo olhando pro nada. Você deveria se chamar mesmo era Reticêncio”. Entretanto, preciso deixar claro que existe uma enormidade de diferença entre ser paisagem e não gostar de abacate. Se Exclemêncio não montasse em touro sem alma que foi parido pela ciência, eu diria que o sujeito afrescalhou.

- Quantos dedo têm aqui, Exclemêncio?
- A palavra que tu disseste fora no singular, mas os dedos tão no plural: dois.

Teste 2 (porque sou teimoso):
Meti a mão em um monte de estrume fresco e tentei adubar a cara dele pra ver se a nariga tava em pleno funcionamento. Pois é, tava.

Voltei meus olhos pra reta que os dele faziam e lá na cerca tava Amelinha, a cabra que já tinha sido a responsável pela iniciação de metade do bando que não foi sequer notado por Fabiana. Ele se apaixonou perdidamente pela bicha e alguém estudado disse que era assim mesmo, coisa de química. Sinceramente, até então Amelinha nunca havia me dado pista alguma de que era clone de cabra.

A notícia se espalhou de olho pra nariz, de nariz pra olho e foi parar bem nos ouvidos de Fabiana. E ocê não sabe como é mulher com concorrência? A mulher começou a ferver e apitar feito panela de pressão e já na mesma hora aproveitou o fogo alto pra cozinhar a pobre da rival. Foi a última a comer a Amelinha.

No dia seguinte, Fabiana tava ainda mais bonita. O Zé Curandeiro comentou à boca de sapo miúda que isso era coisa de canibal que come o inimigo pra modo de ganhar os poderes dele.

- Seilá e nem quero saber – respondeu Exclemêncio, que passou a ser também conhecido como o último viúvo de Amelinha.

Eu não acreditei no que eu ouvi naquele instante e o que eu vi mais pra frente: ele, Exclemêncio Dapratrás, se engrançando com uma galinha*. De pio em pio, a mulher ficou sabendo e a galinha não serviu nem pras macumba de Zé.

Exclêmencio Comebicho tratou de arrumar outra namorada que não costumava falar nossa língua e a mulher (depois de uma lua transbordante de tão cheia) se transformou numa matadora de bicho em série. Quem não tava acompanhando a novela, lançou o boato que o tal Chupacabra tava de volta e tinha aumentado sua fome para o animal que aparecesse na frente.

O Ibama já tava procurando o responsável por tudo aquilo quando uma amiga chique de Fabiana resolveu meter o nariz, o olho, o ouvido e a boca na história. Inventou, veja você, de fazer uma festa onde cada um podia ir do que bem entendesse:

Gosta de mágico? Vá de mágico.
Gosta de médico? Vá de médico.
Gosta de boiadeiro? Então nem precisa ir atrás de roupa.

O povo gostou e lá foi todo mundo vestido um mais engraçado que o outro. Tava até difícil de reconhecer o Exclemêncio. Se não fosse por seu andar de viúvo da arca de Noé, eu teria passado direto. Mas quer saber da maior? Isso durou um tantinho de tempo apenas. Seus olhos se arregalaram feito coruja quando viram Fabiana entrar na festa. Ela tava com uma roupa estranha, feita de couro de boi preto que brilhava quando a luz batia. O tal tecido era todo costurado e fazia da mulher a figura de uma gata**.

Exclemêncio pegou Fabiana pelo braço e foi procurar por Toninho, um amigo achegado do pessoal que tava vestido de padre. Casaram ali mesmo e já foram procurar um telhado com uma casa embaixo pra servir de ninho. Hoje, Fabiana já fala em ter uns guris correndo pela casa e Exclemêncio (quem diria) concorda com tudo e ainda vive dizendo que vai puxar o terreno para a criançada poder ter até cachorro. Mas o que ele não nota é que Fabiana sempre segura mais firme na faca. Esse olho aí, Exclemêncio, é amigo do outro.


Notas do autor:
*o personagem não se refere à metáforas ou figuras de linguagem e sim ao animal galináceo e portador de penas.

**Mais uma vez, o personagem se refere ao bichano, não utilizando a palavra para fazer algum tipo de paralelo estético.

Ilustração da amiga e designer Chloe Valente.
www.flickr.com/photos/e_valente/

15 de maio de 2007

Dinheiro no colchão


Hora de dormir. Visto meu pijama de seda com ursinhos estampados, coloco a venda nos olhos para que a luz da manhã não interrompa as projeções do subconsciente antes do esperado, puxo a cordinha do elefantinho-móbile que fica bem acima da minha cabeça e o Trombinha do Trompete começa a tocar uma versão de “Rain drops keep falling on my head” que seria classificada como “fofa” por qualquer menina entre 12 e 19 anos. Tudo pronto? Todos em seus lugares? Me posiciono confortavelmente na minha cama de molas ensacadas Esquilo - 10 anos de garantia ou seu sono de volta - e atenção emissoras para o toque de 12 carneirinhos.

Tu. Tu. Tu. Tu. Tu. Tu. Tu. Tu. Tu. Tu. Tu. Tu…

Pronto, aqui estou eu no meu sonho. Lá atrás temos os montes Apeninos com calda de caramelo no topo, logo ali vemos uma família de sapos que pulam corda e dois ornitorrincos que brincam de “pé-ou-garra”. Conhece essa? É uma espécie de par-ou-ímpar onde eles ficam com os braços pra trás e, ao dizer “três”, colocam a pata de pato ou a garra pra frente.

Opa, calma aí. Não queria parar o conto dessa forma, mas tenho uma dúvida no nível “Pergunta Super Interessante”. Seria pé de pato ou pata de pato? Alguém aqui já fez mergulho? Na única vez em que eu tentei, estava com uma pedra amarrada no pé. No entanto, lembro que os homens que foram me salvar estavam com pé-de-pato. É isso. A palavra certa deve ser “pé”. Além do mais, confundiria o tal membro com a mulher do pato e isso ia acabar dando merda. De pato pra patinho-feio-que-dorme-no-sofá é um pulo.

Por falar em pulo, e o coelho? Ok, você pensou que o assunto tinha acabado, mas essa dúvida merece dois parágrafos. É pata de coelho ou pé de coelho? Cacete, daqui a pouco eu vou descobrir que nós é que temos pata. E aí? Pé ou pata? Acho que é pé e defendo com uma lógica simples: toda pata que dá sorte tem que ser promovida a pé. Pronto. Chega.

Isso équeu preciso: muita sorte. Ou você acha que eu gosto de sonhar para poder ver unicórnios e bichinhos legais? Ah, vai tomar um ácido. Eu sonho para poder vislumbrar uma imensa luz radiante de como ficar milionário. Quero mais é que money notes keep falling on my head.

Certa vez, sonhei que estava chegando de carruagem em um festa. Até aí, eu tinha começado bem, mesmo sem ter motorista. Apesar da chuva de beterraba que estava caindo nessa hora, não deixei o veículo dourado com o manobrista e fui parar na rua mesmo. Levei uns 15 minutos pra fazer a porra da balisa. Tá achando graça? Por acaso já tentou estacionar carruagem? Não tem espelho retrovisor nem muito menos lateral. Quando eu consegui, lá veio o guardador:

- Pode deixar com a gente, monarquia.

Olhei bem para aquele rosto de sapo que não ganhou beijo da princesa e ele complementou com um susurro:

- Quer ficar milionário, não é? Falsifique moedas e assim será.

Depois daquela, nem entrei na festa. E me diz pra quê? Que mané sonho. Dei logo um jeito de acordar me balançando todo. O guardador achou que aquilo fosse uma convulsão estilo Ronaldinho em umas Copas atrás e queria porque queria desenrolar a minha língua com aquela mão suja. Sorte que eu acordei antes.

Quer dizer, sorte uma ova. Pare de ler, vasculhe seu acervo mental cinematográfico e responda: conhece algum bandido que resolveu falsificar dinheiro e escolheu moedas ao invés de notas? Óbvio que não. Só o burro aqui para pensar que isso poderia dar certo. Comprei cobre, uma máquina industrial, contratei dois ajudantes que trabalhavam lavando carro lá embaixo e comecei a produzir. Resultado: para cada 1 Real que eu fiz, gastei 5. Agora pergunta se eu encontrei de novo aquele guardador de carro? Nem em sonho.

Bom, mas essa aqui é uma nova chance. Tá lá os Apeninos, os sapos, os ornitorrincos e eu pelado. Não liguem: eu já me acostumei. No começo fiquei achando que era coisa de mente de tarado reprimida, que essa pouca vergonha era uma forma de botar pra fora. Nada disso. Eu notei que chamava mais atenção no sonho quando estava nu e isso aumentavam as chances de alguém olhar mais pra mim do que para aquelas zebras que ficam contando as litras uma da outra, por exemplo.

Notou quanto bicho tem nesse sonho? Se eu fosse fazer uma fezinha, ia demorar duas décadas para saber em que animal teria que apostar. Xô, contravenção. Sai do meu sonho, seu viado 24. Por falar nisso, lá vem um porco de porcelana todo pintado, mas com aquele futum característico da espécie.

- Oi.
- Oi, amigo – disse com uma voz anasalada porque estava tampando o nariz.
- Sabe aquela história de falsificar moeda?
- Sei.
- Pois é, eu sou o guardador – e remexeu a pança, fazendo tilintar os níqueis lá dentro.
- Ah, não… volta aqui. Vem que eu te quebro, seu filho da puta.

10 de maio de 2007

Cochilo


A profissão de detetive particular não tem horário comercial. Agora são 11 e 45 da noite e estou aqui, atrás dessa samambaia esperando o sujeito aparecer. Esse sujeito tem nome, sei sua alcunha, mas não posso dizer por questões de sigilo. Shhh… silêncio, estômago… que fome. Ele bem que poderia estar jantando em um restaurante. Assim eu ficaria na mesa do lado, consultando o cardápio durante horas para não ser notado. Da última vez que fiz isso, passei por dois vexames:

- Algum problema, senhor? – perguntou o garçom como quem diz “você tem 7.3 de astigmatismo ou é analfabeto?”

Vexame 2: o restaurante era caro demais. Tive que criar uma cláusula de contrato onde pago e peço reembolso depois. No caso de homens adúlteros, já teve caso da mulher olhar pra conta e ainda fazer comentários sobre o quanto o canalha estava gastando com a sirigaita e desandou a falar. E aí você entende porque ele estava gastando aquela nota preta com outra. Mulheres.

Isso me lembrou o dia que estava em missão quando meu celular tocou. Quer dizer, vibrou. Celular de detetive não toca nunca. Era minha mulher.

- O que você está fazendo?
- Trabalhando, Rita.
- Isso são horas? E porque você tá falando baixo?
- Eu estou em cima de um lustre, Rita. Se eu falar alto, todo mundo vai olhar pra cima.

Já reparou que em conversas agitadas de casal tem sempre um que fala o nome da outra pessoa a cada frase? Geralmente é quem está sem saco de discutir pela quinta vez a mesma coisa. Era meu caso. Ela nunca entendeu meu ofício e chegou a dizer que não era possível, que eu tinha outra. Em um desses serões noite afora, estava numa festa e resolvi fazer uma boquinha na mesa de frutas. Peguei um pêssego e vi um olho atrás dele.

- Camargo! O que você tá fazendo aqui!?
- Sua mulher me contratou para saber o que você tá fazendo.

E o que eu ia dizer nessa hora?

- Ok, Camargo. Já viu que eu não tô fazendo nada. Agora deixa eu continuar trabalhando.
- Tá. – e foi embora disfarçado de abacaxi.

Camargo tá certo, coitado. Ele tinha que trabalhar e ainda foi ético. No dia seguinte, ficou meio sem graça e nem teve coragem de olhar na minha cara quando nos encontramos lá na aula de Yoga. A aula é ótima para quem deseja ficar em posições durante horas. Agora, por exemplo, estou atrás dessa samambaia há tempos na posição pernilongo-na-planta-carnívora. Não dá câimbra nem nada. Maravilha de Yoga.

Pra falar a verdade, eu nem sei porque estou atrás dessa planta. O sujeito é sonâmbulo. Bom, pelo menos foi o que disse a mulher dele. Acordava no meio da noite e cadê o marido? Saía por aí e só voltava quase de manhã. Até aí vai lá. O problema foi quando ele passou a chegar com marca de batom na camisa. E como ela ia esfregar aquilo na cara dele? O sujeito estava dormindo, não tinha culpa.

Se bem que eu nunca vi ninguém beijando de olho aberto. Mas também não ia dizer isso para a coitada. Deixa pra lá.

O cara era profissional e não tinha nem essa de ficar andando de braços estendidos, igual sonâmbulo amador. Nunca tinha visto ninguém dormir na direção e não acordar em um poste. Ele não só dirigia, como fazia baliza melhor que a minha mulher.

Pronto, foi só falar nela que o celular toca. Não vou atender, foda-se. Manda o Camargo vir atrás de mim.

Opa, lá vem o sujeito. Estacionou o carro, abriu a porta sem encostar no do lado, deu a volta pela lateral, pulou um cachorro que vinha no sentido oposto, desviou de uma linha de pipa com cerol, rolou por cima do capô para desviar de um motoboy, caiu pro outro lado, abriu a porta para uma loira, sorriu, ela entrou no carro, desviou de um cocô que o mesmo cachorro anterior havia deixado e seu dono porco não limpou, esperou mais três motoboys passarem na frente do carro, abriu a porta do motorista, entrou, ajeitou o espelho (pra quê?), sorriu novamente para a loira, saiu com o carro e – depois de fazer a melhor volta do circuito de Nonstop Place – parou num motel. Sua esposa está certa: o filho-da-mãe tá dormindo com outra.

8 de maio de 2007

Inhame Novo


Não é nada fácil achar um lugar onde todos os prédios têm o mesmo número: 13. Mas ele sabia exatamente onde seus passos iam dar. Só quem conhecia bem a vizinhança não precisava dividir o olhar entre o destino e as oferendas do caminho. Depois que todo bairro foi redesenhado, os quarteirões diminuíram e as esquinas aumentaram para receber mais pratos de barro, farofa e galinha preta. Tudo sempre mal iluminado por velas coloridas de tamanhos que variavam de acordo com o pedido e geralmente amarradas com fitas também coloridas. Nós atados tão fortes quanto a fé.

As cores são as primeiras pistas para entender o resultado que o trabalho precisa atingir. Ninguém até hoje deve ter parado pra contar, mas as velas vermelhas são as prováveis líderes do ranking de vendas e isso só pode querer dizer uma coisa: vai ter gente mal amada assim no inferno. O fato é que o uso das cores deve dar certo para orientar as filas lá em cima, igual guia de boleto. Eu acredito, sabia? Afinal, não conheço um único caso de santo daltônico no mundo. Em alguns casos a confusão celestial pode até acontecer, mas por outro motivo: uma bela garrafa de pinga cheia até o gargalo. Aqui, todos os goles são pro santo.

Melhor dizendo: os goles, as lojas especializadas em pinga e todo resto. Tudo começou na praça da matriz, lugar onde foi construído o primeiro terreiro. Mãe Molequinha do Patuá, sua fundadora, se transformou logo no nome da avenida principal depois que foi encontrar com o preto velho lá pelas bandas de Iansã. Há quem diga que ela já havia tentado fazer um projeto habitacional parecido em mais dois lugares do Rio de Janeiro, mas não deram muito certo. Do sonho sobraram apenas os nomes da Praia da Macumba e de uma cidade litorânea conhecida como Búzios.

Mas o santo dela fazia musculação - sem faltar na academia - e aí estão todas essas ruas e calçadas para recepcionar e proteger seus filhos, como eram chamados todos que resolveram morar por aqui. E não pense você que é coisa barata arrumar um canto no bairro. O pessoal confecciona suas guias com pedras preciosas e costumam acender seus charutos com dólar. O pai desse rapaz era um desses bem de vida e fez questão de acender um autêntico La Flor de Isabela quando ele nasceu. Um mimo dado por Jorge Amado com a recomendação de ser apreciado no momento oportuno.

Sua geração foi uma das primeiras a nascer aqui e ser criada de acordo com as crenças dos ilês. Lembro de ter visto sua apresentação na escolinha, vestido com uma roupa de palha que cobria da cabeça aos pés representando um orixá. No final, o menino virou orixá com um galo na cabeça. Normal, pois não era comum enxergar direito com aquilo e o galo tratou de voltar pro lugar com aquela simpatia de reza e faca esquentada na boca do fogão.

De lá pra cá, o rapaz virou homem, casou, mas continuou sendo apenas um erê para os que o viram crescer. Nunca teve lá muitos problemas na vida por ter cabeça feita e uma forte proteção de Xangô, mas seu corpo não era fechado como se pensava. A porta do peito ficara propositalmente encostada e ela entrou. Moça bonita. Cortava o próprio cabelo para que ninguém ousasse colocar a mão em seu Ori. Apesar de toda sentinela, ele passou a morar na sua cabeça.

Relação intensa. Dezenas de velas vermelhas acesas, espalhadas pelo quarto, e o poder dessa cor você já conhece de parágrafos anteriores. Mas não é sempre que o santo bate assim, de primeira. As primeiras discussões não tardaram a acontecer.

- Não quero...

- Você não tem...

- Não gosto...

- Você é...

- Não é assim...

- Quer saber?...

- Não aceito...

- Muito menos eu...

- Nunca poderia imaginar...

Muitos imaginaram e profetizaram. Estava próximo o dia em que os atabaques iam cantar e a pomba-gira iria baixar forte no rapaz, fazendo com que ele rodasse e rodopiasse a baiana. É, aí danou-se.

- Chega. – Saiu com a roupa do corpo e a guia no pescoço.

Ele foi, mas agora seus passos refaziam o mesmo caminho pisando com a suavidade de um espírito que é íntimo de seu caboclo. Conhecia cada beco com a palma de uma mão que já dizia bastante coisa em quase um terço de sua linha da vida, um pequeno córrego formado pelo suor da ansiedade. Chegou em frente à porta. Rua Oxossi Guerreiro, 13/13F. Respirou fundo. Tentou se perguntar por que estava fazendo aquilo, mas a porta abriu antes de receber a resposta. Ela sorriu como já soubesse: ali estava sua pessoa amada em três dias.