19 de setembro de 2007

Poderes


- Olha só o que eu sei fazer.
- Faz aí.
- Hahahahaha.

A maior parte das pessoas descobre seus super poderes enquanto criança. O vizinho da rua de cima, por exemplo, conseguia virar as pálpebras. Carla colocava a língua no cotovelo. Ruivo era capaz de virar uma garrafa inteira de refrigerante em segundos, de um gole só. De quebra, ele dava o maior arroto do Bairro, fato que o classificava com duas menções honrosas.

E eu?

Eu era um covarde. Minhas maiores ousadias em ordem de importância foram: subir no banco e pegar biscoito em cima do armário. Tudo bem, você vai dizer que foi apenas uma ação, mas o evento é composto pelo perigo da altura em relação ao solo e a presença cruel e perversa da minha tia-avó. Ela era dona de uma casa minada, com feixes de raio laser por todos os lados. Um passo em falso e bibelôs bélicos poderiam me transformar em um saci. Assim, ganharia o poder de andar num pé só.

Em lugares desse tipo, menino e bola não dividem o mesmo espaço.

- Nunca! Só da porta pra fora. Do escudo invisível pra lá e não tem mais conversa.
- Ok. Tá bom.

Um dia, meu padrinho apareceu com um presente. De dentro da caixa quadrada saiu algo geometricamente oposto. O reflexo da bola encaixava perfeitamente na minha íris brilhante.

Foi tudo automático. A bola foi ao chão, o pé foi à bola e a bola foi até a tragédia em forma de estilhaço. O som ricocheteou em vidros e porcelanas, atingiu os tímpanos da velha, ressonou no cerebelo e acionou o braço em direção ao tamanco.

E lá veio o tamanco em uma velocidade maior que minhas pernas trêmulas. Não tinha como escapar. No reflexo, encolhi a cabeça com força e criou-se a escuridão. Ouvia os gritos da velha abafados e misturados com o som acelerado do meu coração e o inflar e desinflar ofegante dos meus pulmões. Segundos depois e com um pouco de coragem, tirei a cabeça para fora do corpo e ganhei a rua.

Semanas depois, toda vizinhança conhecia o poder do garoto tartaruga e seu drible futebolístico com a bola no lugar da cabeça.