17 de janeiro de 2010

Os quarenta mais eu


Um dia você recebe pelo correio a comunicação de que foi escolhido como um dos Quarenta. Só isso. Você é um dos Quarenta. Não há outras informações. Quarenta o quê? A comunicação não diz.

Você não liga. Deve ser propaganda. Depois certamente chegará um prospecto com ofertas para você, que é um homem de gosto apurado, um homem que, afinal, pertence ao exclusivo grupo dos Quarenta etc. Talvez seja uma coleção de livros ou uma linha de artigos de toalete, a preços especiais para 40 privilegiados como você.

Mas não. Durante muito tempo você não recebe mais nada. Até esquece do assunto. E um dia recebe pelo correio um cartão bem impresso, em relevo, com seu nome seguido da frase “Um dos Quarenta” e num canto o número 26.

Como o primeiro envelope, este não tem nem o nome nem o endereço do remetente. Aí você se dá conta de que também não há carimbo do correio. O envelope foi entregue diretamente na sua porta.

Você fica intrigado. Pergunta a amigos se eles sabem alguma coisa sobre os Quarenta.

- Quarenta o quê?

Você não sabe. Só sabe que é um deles. Ninguém jamais ouviu falar nos Quarenta. Ninguém das suas relações recebeu nada parecido. Você começa a fazer fantasias. Pertence a uma elite, mesmo que não saiba qual. As 40 pessoas mais… o quê? Não importa. Você é um dos 40 mais alguma coisa do Brasil. Ou será do mundo? Há algo que o distingue do resto da humanidade. Por quê, você não sabe. Quem o escolheu? Também não sabe. Mas não deixa de ser uma sensação boa se sentir um dos Quarenta. Nem todo mundo pode ser um dos Quarenta. Só 40.

Você começa a usar seu cartão dos Quarenta na carteira. Quem sabe? Um dia ele pode servir para alguma coisa.

- Você sabe com quem está falando? Sou um dos Quarenta.

Passam-se meses e chega outra informação. Haverá uma reunião dos Quarenta! Você deve aguardar informações sobre local, data, transporte, acomodações…

Sua curiosidade aumenta. Você finalmente vai conhecer a misteriosa irmandade à qual pertence. Quem serão os outros 39?

Mas as informações não chegam. Chega, um dia, um telegrama. Também sem nome ou endereço de remetente. O telegrama diz:

“NÃO VAH REUNIÃO QUARENTA PT EH ARMADILHA”.

É brincadeira. Agora você sabe que é brincadeira. Mas que brincadeira boba e cara, com telegramas, cartões em relevo…

No dia seguinte, toca o telefone. É noite, você está sozinho em casa, e toca o telefone. Você atende.

É uma voz engasgada. A voz de um homem agonizante.

- Fuja… – diz a voz, com muito esforço.
- O quê?
- Fuja! Eles estão nos eliminando, um a um…
- Que-quem são eles?
- Não interessa. Fuja enquanto é tempo!
- Mas eu…
- Não perca tempo! Eles me pegaram. Estou liquidado.
- Quem é você?
- O número 25…

Há um silêncio. Depois você ouve pelo fone o ruído borbulhante que faz o sangue quando sobe pela garganta de alguém. Você precisa saber uma coisa.

Você grita:
- Quem somos nós?

Mas agora o silêncio do outro lado é completo.
E então você vê que estão tentando forçar a sua porta.


*


A porta estava sendo forçada de uma forma estranha. Um matador em série não seria tão estúpido a ponto de fazer tanto barulho com uma maçaneta. Seria sutil. Um homem sutil com um clip de papel que entraria perfeitamente na fechadura e clic. Afinal, morrer pode ser ruim, mas o pior é ser morto por um amador. Tá pensando que está matando quem? Eu sou um dos 40. Um dos 40 que vão para um lugar lá em cima. Um lugar especial. Será? Será que ser um dos 40 também se extende para o céu e outras dimensões? Existe aquele ditado bobo que nada se leva dessa vida, mas eu vou deixar a cateira no bolso só por precaução. Chegando lá eu apresento e tento me identificar como alguém que foi escolhido através de um importante processo de seleção.

Será que ele está fazendo seu trabalho em ordem uma ordem específica ou mata conforme esbarra com a pessoa? Sim, porque as possibilidades são inúmeras. Ele poderia começar pelos pares ou, sei lá, pelos números primos. Dois é primo? Acho que sim, mas é sempre difícil tentar fazer conta quando tem alguém querendo arrombar sua porta. E não estou falando aí do medo de morrer não. É esse barulho repetitivo irritante que acaba tirando a concentração.

Quantos já teriam morrido? Será que eu vou ter que ligar para o próximo da lista também? Será que ele vai entrar com um daqueles globos da lotérica para que eu sorteie o próximo a empacotar?

“Olá, estamos aqui para mais um sorteio e chamo aqui o Eduardo, um dos convidados da platéia para que ele nos ajude. Vamos lá… está saindo o número… opa! Já temos a próxima vítima, vamos passar agora para nosso auditor… e está ok! O próximo a morrer é o número 32! Parabéns. Aguarde que o próprio Eduardo vai ligar pra você dentro de instantes e, quando menos você esperar, a morte estará batendo na sua porta!”

Sinceramente, eu estou achando que esse clube tem muitas perguntas e poucas respostas. É um absurdo. Somos os escolhidos e deveríamos ter o mínimo de informação. Os mortos ou quase-mortos merecem respeito. E essa demora para abrir a porta e acabar logo com isso? Até os condenados à pena de morte sofrem menos. O sujeito demora tanto que, ao abrir a porta, já estarei estatelado no chão. Causa mortis: úlcera.

Bom, chega. Vou lá facilitar as coisas. Abro a porta, me apresento e pergunto logo pra quem eu tenho que ligar. Estou preparado para o meu fim.

- Sim. Eu sou o número 26. Acabe logo com isso, seu assassino inescrupu… inescrupulosa? Você é uma mulher? Nunca pensei que seria uma mulher…
- Oi. Esse não é o 42?
- Não. Sou o 26 e, para sua informação, os escolhidos vão somente até o número 40.
- 26? Mas aqui na porta diz que é o… ai, desculpa! Pensei que fosse o meu apartamento! Já tava há horas tentando encaixar essa madilta chave na porta.
- Você é minha vizinha?
- Sim, mas foi sem querer que…
- Ok. Esquece.
- Desculpe mesmo. Eu…
- O que é isso embaixo do seu pé?
- Ah, ai… eu ainda tô aqui pisoteando sua correspondência…
- Você pode tirar o pé de cima?
- Ah, claro. Olha, você não faz ideia da vergonha que eu tô de…
- Ok. Boa tarde.

Mais uma carta. Mais um papel com letras douradas.

“Após revisarmos alguns critérios em nossos processos de seleção, informamos que o Senhor está fora do clube por questões de incompatibilidade de perfil. Esperamos que não se sinta lesado de forma alguma e entraremos novamente em contato quando novas vagas forem abertas.”

Mas o que eu fiz? Porquê? Nem se importam em dizer se eu fiquei classificado em quadragésimo primeiro ou ducentésimo quinto. Quer saber? Eu não preciso de nenhum clubinho killer segregacionista pra me matar. Deixa que essa minha própria vida se encarrega disso.


* até este ponto, o texto é do Veríssimo.

Um comentário:

Tiago Moralles disse...

Jogral literário.
Criativo e bacana.