2 de janeiro de 2010

Flores ou Velas


O corpo estava fechado naquela caixa de madeira e tudo em volta tinha um cheiro de cera derretida e flores brancas. Naquele concurso de quem fazia o rosto mais infeliz, seu olhar estava pensando nas compras do supermercado. Um semblante tão vazio quanto a prateleira de produtos de limpeza. Indiferença que se escondia atrás de óculos escuros.

Minha cabeça baixa não era por tristeza e sim porque eu estava olhando para suas pernas. Poderia ter aproveitado a presença do padre para confessar mais esse pecado e erguer um brinde ao defunto antes de virar o vinho do cálice, garantindo de vez que a hostess do inferno me chamaria pelo nome ao aparecer por lá. Queria poder sorrir, beber e conversar sobre as coisas boas dessa vida, mas em alguma parede daquela capela tinha um cartaz dizendo ser proíbido. Aquelas foram as regras tolas que seguimos durante toda manhã, mesmo sabendo que nenhum de nós tinha o menor sentimento por aquele filho-da-puta.

No dia seguinte, mandei um buquê para sua casa acompanhado de um bilhete: “Eram pra ele, mas aprendi que flores cortadas não podem ser enterradas de volta”. No meio da noite, você ligou para agradecer. Disse que havia retirado as pétalas e preparado um banho com velas acesas em volta para sentir o mesmo cheiro do cemitério. Pensei em suas pernas, dentro da banheira, saindo e voltando para a água morna apenas para sentir a diferença de temperatura entre a realidade e o seu mundo. Perguntei porque eu estava ouvindo aquele eco. Você explicou que o celular estava no viva-voz para deixar as mãos livres enquanto ouvia a minha voz.

Aceitei com uma certa facilidade o convite interativo na sua brincadeira particular. Fui até a janela em busca de uma inspiração vouyer e assim comecei a dizer tudo que estava louco para fazer com você em um ritmo lento, calmo e rouco. Minhas palavras se misturaram ao som do seu corpo mexendo na água e à uma respiração que foi se tornando cada vez mais forte. Seus gemidos estreitos denunciavam que os olhos estavam fechados, enquanto a cabeça acompanhava os movimentos circulares dos dedos.

Seu ritmo era constante e alternado, ora mais forte, ora mais lento, como algo composto por Vivaldi. Com um pouco mais de concentração, você chegou no ponto e momento certos. Foi nesse instante que a respiração transbordou, as pálpebras oscilaram com força e o peito deixou o ar escapar através de uma boca entreaberta. Um gemido final fez seu rosto se esfregar na borda húmida da banheira. Eu fiquei mudo por alguns segundos até o silêncio ser quebrado pelo som de um isqueiro. Nossa conversa durou o tempo exato de um cigarro.

No dia seguinte, combinamos de nos encontrar no alto da torre. Ventava muito e seu cabelo chicoteava o rosto, denunciando uma ansiedade que o restante do seu corpo tentava esconder. Seus braços estavam arrepiados como aqueles que saem de uma banheira já procurando pela toalha.

As poucas palavras que saiam da boca se agarravam ao momento, mas logo eram arrastadas pelo vento como um papel que fugiu da mão por timidez. Uma timidez se transformou em um beijo no rosto e me dei conta que aquela foi a primeira vez que a gente se cumprimentou. O tato foi nosso último muro e ele caiu para dar lugar a um abraço longo. Foi quando senti essa cicatriz que faz um caminho enorme nas suas costas. Eu gosto dela, você sabe. Gosto apesar de nunca ter me contado até hoje o que realmente aconteceu. Ao invés disso, sempre transforma a dor em poesia, repetindo que alguém havia tentado tirar seu coração da pior maneira possível.

O abraço terminou dando início a um sorriso que disse precisar de mim da forma mais maliciosa que eu poderia imaginar. O sorriso veio acompanhado de um envelope que foi retirado da bolsa e entregue em mãos. Era algo já lido, mexido, amarrotado. Enquanto eu fazia uma cara de quem não tinha a menor ideia do que aquilo se tratava, seus olhos estavam aguardando a minha reação. Ali dentro havia uma única folha de papel. Era um documento, um testamento. Aquele maldito tinha deixado tudo para você, mas com uma condição: você teria que acabar com a minha vida.

O papel voou das minhas mãos ficando apenas a dúvida se a fragrância do momento seguinte seria de flores ou velas.

3 comentários:

Tiago Moralles disse...

Porra, saudade desses textos aqui Rodolfo.
Bem vindo a sua casa novamente hehe.
São detalhes que fazem de um texto, um bom texto, e aqui, a gente tem bastante.
Microabraço e um 2010 cheio de detalhes.

Tati Messias disse...

Ah! Que delícia te ler!
Preciso te dar meu livro para uma dedicatória, com flores.

Grous bisous!

Rodolfo Barreto disse...

@Tiago
A sorte é que eu não tenho plantas nessa casa, não é?
Obrigado pelas palavras.
Abraços!

@Tati
Claro, claro. Vamos combinar sim.
Já estou voltando pra São Paulo daqui a pouquinho.
Beijo!